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Isabela Durão

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Semana

A hora e a vez dos médicos nas redes sociais

Em alta durante a pandemia, profissionais de saúde usam músicas e dancinhas para atrair pacientes no TikTok e Instagram. A prática também causa polêmica

Leonardo Neiva 27 de Junho de 2021

A hora e a vez dos médicos nas redes sociais

Leonardo Neiva 27 de Junho de 2021
Isabela Durão

Em alta durante a pandemia, profissionais de saúde usam músicas e dancinhas para atrair pacientes no TikTok e Instagram. A prática também causa polêmica

Quem observa os 738 mil seguidores que Karoline Landgraf reuniu em seu perfil no TikTok pode se surpreender ao descobrir que a ginecologista de 34 anos entrou na rede social apenas em fevereiro. No início do ano, após decidir focar os atendimentos em casos ginecológicos — antes ela também atuava como obstetra —, a médica de Vitória, no Espírito Santo, ficou com medo de ver o número de pacientes cair pela metade. Na época, já pensando em atrair um público maior e mais variado, contratou uma agência de marketing para ajudá-la a profissionalizar seu perfil no Instagram.

A ideia, como ela conta, era postar conteúdos relevantes, informações e sugestões médicas relacionadas à sua área de atuação. A partir disso, pretendia criar um público de potenciais clientes, que passasse a acompanhar seu trabalho pelas redes. Em algum tempo, conseguiu chegar à marca de cinco mil seguidores na rede social.

A entrada no TikTok, no entanto, veio por acaso. “Eu colocava todos os vídeos que fazia no TikTok no privado, para repostar no Insta. Mas, numa dessas vezes, postei sem querer como público. Uns três dias depois, quando voltei para fazer outro vídeo, vi que aquele último tinha 180 mil visualizações.” Surpresa com o sucesso, decidiu tornar públicos todos os outros posts que tinha feito de forma privada na rede social. “Aí os vídeos começaram a viralizar um atrás do outro.”

Instagram e TikTok  têm sido usadas por médicos para divulgar informações de saúde para seus seguidores. E também para atrair clientes e até marcas

Apesar de usar a agência de marketing para desenvolver as artes de seus canais, faz questão de produzir ela mesma a maior parte do conteúdo. “Quando tenho uma ideia, anoto na mesma hora. Às vezes, gravo três vídeos seguidos e guardo para ir usando. É onde e na hora que der. A maioria faço no consultório, mas alguns gravo em casa também”, conta.

Assim como no caso de Karoline, redes sociais — com destaque para o Instagram e TikTok — têm sido usadas cada vez com mais frequência por médicos no Brasil e no exterior para divulgar informações de saúde para seus seguidores. E também como uma forma chamar a atenção para o próprio trabalho, atrair clientes ou até conseguir algum retorno financeiro com publicidade para marcas.

As dores e delícias do TikTok

Lá fora, fazem sucesso perfis como o da médica Danielle Jones, que, além de tratar de mitos e verdades sobre a saúde, também fala com frequência sobre inclusividade e direitos de homossexuais. Outro que fez bastante sucesso com suas danças foi o anestesista Jason Campbell, que ficou conhecido como Dr. TikTok. Desde então, porém, a popularidade do médico decaiu e ele decidiu apagar sua conta após ser acusado de abuso sexual. No Brasil, outro ginecologista, o doutor Norberto Maffei, ficou famoso em 2020 com a “Dança da Candidíase”.

Também viralizam constantemente vídeos de equipes médicas dançando após o sucesso de uma operação ou a alta de um paciente. Por vezes, no entanto, o conteúdo é considerado inadequado, por uma série de motivos. Ou o médico não está apto para fazer aquele procedimento ou está expondo o paciente de forma inadequada ou ainda a dancinha acaba casando mal com a seriedade do assunto tratado. Aí toca apagar o vídeo para que o estrago não seja maior.

A própria Karoline diz que evita fazer muitas publis para não incorrer em um problema ético. Propaganda de medicamentos, então, nem pensar. Mas faz ocasionalmente publicidade de produtos distantes de sua prática profissional, como os voltados para a depilação. Para não cair em algum comportamento contrário às determinações dos órgãos que regem a profissão, a ginecologista contratou uma advogada, que a ajuda a avaliar o conteúdo de suas redes sociais.

Muito além de uma dancinha

Hoje, o que regula a atividade de médicos em redes sociais são basicamente dois documentos: o Código de Ética Médica, do Conselho Federal de Medicina, e uma resolução de 2011 — criada quando algumas redes sociais que temos hoje estavam engatinhando ou nem existiam — que rege todo tipo de publicidade médica. “Há inclusive uma grande discussão dentro da profissão sobre se as normas que existem hoje são aplicáveis ao caso das redes sociais”, afirma Leonardo Navarro, advogado especializado em direito da saúde.

Dentro desses documentos, uma das regras mais importantes é a de que qualquer tipo de publicidade profissional feita por médicos deve ter caráter informativo. Não à toa, o que se vê muito por aí são dicas, músicas e danças usadas para explicar conceitos sérios de saúde e bem-estar ao público em geral.

Mas as derrapadas também não são raras. Mais recentemente, em abril, uma cirurgiã plástica de Ribeirão Preto (SP) teve sua licença de trabalho suspensa após compartilhar vídeos no TikTok em que exibia pele e sacos plásticos com gordura retirados de um paciente.

Navarro explica que a exposição do paciente nas redes é uma prática terminantemente proibida na profissão. “Essa médica levou uma das piores punições possíveis. O vídeo que ela postou ainda dizia ter caráter informativo, mas não tem como uma pessoa dançando com um pedaço de corpo humano num centro cirúrgico servir para informar.”

Quem não tem telhado de vidro…

Da mesma forma, também não se pode postar fotos nem mesmo posando com os pacientes, um erro em que muitos médicos ainda caem, explica o advogado. Outra prática muito comum nas redes, e terminantemente proibida, é a do “antes e depois”, especialmente no caso de cirurgias plásticas. “Nenhum médico faria um antes e depois com um paciente que adquiriu uma necrose ou teve uma cicatrização incorreta. Então não pode, porque vende essa ideia de segurança, de que todos os procedimentos são bem-sucedidos.”

Muitos médicos, ao entrar nas redes, não pensam em questões éticas e jurídicas, só em aumentar o faturamento

Usar as redes sociais para autopromoção também é vedado aos médicos em geral. Na prática, significaria fazer propaganda específica de algum procedimento de seu consultório, incentivando o paciente a realizá-lo. “Muitos médicos, ao entrar nas redes, não pensam em questões éticas e jurídicas, só em aumentar o faturamento. A relação deve ser calcada em confiança, carinho e zelo pelo paciente. Quando isso se quebra, e o médico começa a mercantilizar a profissão, constrói um telhado de vidro que um dia vai desmoronar.”

Esses cuidados são necessários principalmente porque o público leigo fica muito vulnerável na relação com médicos em redes sociais, destaca Adriano Bento, diretor do Departamento de Comunicação da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. O risco maior, segundo ele, é de que os internautas mais descuidados sejam impelidos a procurar profissionais não habilitados a praticar aquele procedimento ou mesmo pessoas sem nenhuma formação na área.

Como atrair pacientes e influenciar pessoas

No primeiro vídeo que postou no TikTok — hoje com quase 2 milhões de visualizações —, Karoline ensina de forma fácil como descobrir que a mulher está ovulando. Enquanto mexe a cabeça ao som da música ao fundo, ela mostra uma imagem do muco que, ao sair da vagina, indica o processo de ovulação. “O formato ajuda a passar as informações, mas é muito superficial. Serve só como um alerta, para a pessoa conhecer e depois buscar mais informação ou mesmo uma consulta.” Atualmente, ela diz atender online pacientes que vêm do mundo inteiro. Devido à demanda, deixou de lado as consultas por planos de saúde; hoje só atende de forma particular.

Ao mesmo tempo em que é fácil derrapar em conteúdo impróprio, muitos médicos também enxergam as redes como forma de continuar visíveis e atrair novos clientes, especialmente num momento difícil como o da pandemia. De acordo com Navarro, esse sentimento tem sim motivo para existir. Algumas pesquisas já apontam que a maioria dos pacientes procuram as redes sociais dos médicos antes de decidir marcar uma consulta, diz o advogado.

A mesmo tempo em que é fácil derrapar em conteúdo impróprio, muitos médicos enxergam as redes como forma de continuar visíveis, especialmente na pandemia

A consultora de marketing Maeve Nóbrega, que atende médicos preocupados em se comunicar melhor com o público, diz que passou a concentrar mais esforços no atendimento relacionado a mídias sociais desde o ano passado. Dos nove clientes que tinha com essa necessidade, o número saltou para 43 com a pandemia. Embora atenda principalmente profissionais mais velhos que querem entrar nesse universo, ela diz que mesmo jovens familiarizados com as mídias sociais acabam precisando de consultoria ao entrar na profissão, seja pela falta de tempo para conciliar a atividade com a prática profissional ou disposição para pensar sozinhos em novos conteúdos para postar diariamente.

Vale (quase) tudo

Na faixa entre os 45 e 50 anos, que constitui a maioria de seus clientes, Maeve prefere deixar de lado as dancinhas, mas educa para a criação de vídeos no Youtube e Instagram, assim como textos informativos. A maior preocupação desses médicos, diz a profissional, é que as pessoas entendam o que significa sua especialidade e que tipos de males eles podem tratar. “Sentem que muitos pacientes acabam procurando outro profissional porque não entendem exatamente o que eles fazem.”

Outro motivo que alguns profissionais encontram para atuar nas redes sociais é até mais simples: há uma sensação de que todo mundo está fazendo isso, e eles querem se sentir incluídos. Mas nem por isso vale tudo nas redes. “Minha maior preocupação é quando vejo um médico conceituado fazendo TikTok com dancinha de adolescente. Existe um potencial muito maior escondido ali”, declara Maeve. Segundo ela, hoje os médicos mais requisitados ainda não estão no Instagram. O que não significa que buscar esse caminho não seja uma procura legítima. “Estão atrás de uma alternativa para o futuro, é melhor do que não fazer nada.”

E, em alguns casos, a resposta positiva pode vir de forma inesperada. “A médica de mais idade que eu atendo é uma endocrinologista de 64 anos, que antes não sabia nem mexer no Instagram”, conta a consultora. “Um dia, uma paciente que ela não encontrava havia 20 anos apareceu no consultório. Foi a filha quem descobriu pelas redes sociais que a médica ainda estava atendendo depois de todo aquele tempo.”