Sustentabilidade: a obsolescência programada não funciona mais — Gama Revista
O que é descartável?
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Isabela Durão

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Depoimento

A obsolescência programada ficou obsoleta

Meu celular pode ser obsoleto ou ultrapassado, mas isso não faz dele algo descartável. Não trocar o aparelho é quase uma causa. Quero ver até quando ele dura

Lia Assumpção 29 de Agosto de 2021

A obsolescência programada ficou obsoleta

Lia Assumpção 29 de Agosto de 2021
Isabela Durão

Meu celular pode ser obsoleto ou ultrapassado, mas isso não faz dele algo descartável. Não trocar o aparelho é quase uma causa. Quero ver até quando ele dura

Minha última troca de celular foi em 2017. Foi motivada pelo aplicativo de chamar taxi, que demorava aproximadamente sete minutos para carregar o mapa. Atendi ao apelo da minha família que achou que não dava mais. Sofro muito bullying por causa dele. Sempre que o pego para tirar fotos, alguém estranha seu modelo e pergunta “Que celular é esse?”; tenho amigas que gentilmente pedem que não seja o meu aparelho o responsável pelo registro de algo importante. Ele não é moderno, mas funciona, é o que eu respondo. No mundo dos eletrônicos, muita coisa é considerada vintage com cinco anos de uso. E vintage é uma palavra em francês para dizer que algo é antigo. Soa também como ultrapassado, velho talvez? Um outro adjetivo para ele é obsoleto. E a obsolescência das coisas é um dos motivos que faz com que elas sejam descartadas. Meu celular pode ser obsoleto ou ultrapassado, mas isso não faz dele algo descartável. Não trocar o aparelho é quase uma causa. Quero ver até quando ele dura. Ou até quando é possível usá-lo.

Passei a ver a descartabilidade como algo massivo ali nos anos 1990, quando vinis foram substituídos por cds. Apesar da indignação com a impossibilidade de consertar e continuar usando a vitrola naquele tempo (que é bem parecida com minha tentativa de continuar usando o celular por muito tempo) eu ainda não conhecia o termo obsolescência programada, que como o próprio nome diz, programa quando algo se tornará obsoleto. Costumo dizer que todo mundo sabe o que é obsolescência programada, só não sabe seu nome. O fato de ser mais fácil (ou mais barato) comprar algo novo do que consertá-lo é o “sintoma mais comum” dela. Essa é uma prática, que arrisco dizer, já fez você trocar algo antes do que gostaria.

Essa prática é tão comum no nosso cotidiano que muitas vezes não paramos para pensar nas suas consequências, que vão além do lixo, da poluição e dos impactos no meio ambiente, afetando nossas relações como sociedade. Ao nos tornarmos uma sociedade consumista, corremos o risco de tratar as relações humanas a partir do padrão das relações entre consumidores e objetos de consumo. Mas, apesar de sempre pensar nisso, o foco aqui é na ideia de que não foi sempre assim e eu nunca tinha pensado nisso até descobrir que a obsolescência programada teve um começo. Saber isso, fez com que eu passasse a me perguntar — e ansiar — pelo seu fim.

Com a estimativa de durabilidade vitalícia, a pessoa passa a vida sem trocar lâmpadas e isso não é nada bom para o cara que as produz

A lâmpada foi inventada ainda em um período em que as coisas eram feitas para durar. Quando Thomas Edison apresentou o primeiro modelo de lâmpada em 1871, a estimativa é que ela tivesse uma vida útil de 100 mil horas (um desses primeiros modelos está aceso até hoje numa cidadezinha dos EUA). Em 1924, ela era comercializada com 2,5 mil horas de vida e, em 1940, com mil horas de uso. Para além da redução drástica, o porquê de ela ter acontecido é que me interessa: com essa estimativa de vida útil, a pessoa passa a vida sem trocar lâmpadas e isso não é nada bom para o cara que as produz. Como eram poucos fabricantes naquele momento, eles decidiram — deliberadamente e de comum acordo — modificar a maneira como eram produzidas a fim de diminuir seu tempo de vida e aumentando suas vendas.

Quando Ford descobre a moda

Nessa mesma época, os anúncios de carro eram curiosos (e lindos). Um deles, americano, tem a ilustração de uma mulher elegante com um vestido bufante turquesa. Ela usa luvas brancas e está apoiada num carro também turquesa com a capota branca e um rabo de peixe na traseira. A imagem tem uma atmosfera quase casual, dá a impressão que ela está assim tranquila, saindo para jantar numa quarta-feira. Ela ilustra o que foi — e ainda é — chamado de “modelo anual de carro”, que passou a vigorar a partir dos anos 1940. Aplicado aos carros, conceitos da moda foram utilizados para alavancar as vendas. E alavancaram. Não só porque modelos anuais ficam fora de moda, mas porque a lanterna da traseira de rabo de peixe poderia apresentar defeito ou quebrar depois de um ano, quando um novo modelo muito mais moderno já estava sendo comercializado. Vale dizer que logo antes do modelo anual passar a vigorar, aumentando significativamente as vendas de carro, o Sr. Ford, comercializava carros que vinham com um manual muito explicadinho de tudo o que tinha ali naquele produto, junto com uma caixinha de ferramentas para que você consertasse seu carro e ele ficasse com você a vida toda.

A propaganda nos fez desejar, consumir e descartar, como nunca antes. Uma ajudinha importante também foi do crédito

É claro que contexto é mais complexo do que isso e que o fato da indústria ter avançado, também ajudou no barateamento dos produtos. O conceito de descartável é um primo muito próximo da obsolescência programada, talvez até irmão. Eles datam de épocas muito próximas e, graças à implementação de um, é que a outra pode surgir. Porque há cem anos todo mundo queria coisas duráveis, esse era o valor. E num dado momento, passou-se a valorizar o novo. A propaganda nos fez desejar, consumir e descartar, como nunca antes. Uma ajudinha importante também foi do crédito, que fez com que pudéssemos comprar com um dinheiro que não está, necessariamente, na nossa mão. Os exemplos acima ilustram essa passagem e ajudam a entender como assimilamos o descartável em nossas vidas, sendo motivados a trocas cada vez mais frequentes de objetos. Eles estão também associados com os tipos específicos de obsolescência programada: 1) artificial (impossibilidade de conserto); 2) psicológica (um novo modelo torna o anterior obsoleto); 3) tecnológica (meu celular).

Uma das dificuldades a respeito da obsolescência programada é que não é possível afirmar que algo foi feito para quebrar — a não ser que o fabricante te conte. Nunca nenhum me contou. Mas, lançamentos anuais seguidos de dificuldade de conserto, por exemplo, são práticas que dão pistas de sua existência ou de que a intenção daquele produto não era sua durabilidade, pois se fosse, assistências técnicas e peças estariam na equação. Quando a tela do celular quebra, por exemplo, o fato de o conserto demorar um pouco ou a diferença de valor não ser assim tão grande, somado a um eventual atrativo de uma câmera um pouco melhor (e meus primos estão aí para dizer isso para mim também), fazem a troca “ser mais atrativa” do que o conserto. Mas por que mesmo a gente tem que trocar o aparelho todo e não só o vidro ou a câmera? Tem uma lógica de produção aí que afeta a maneira como consumimos. Mas essa lógica do compra-usa-descarta em que estamos metidos é tão naturalizada na maneira como consumimos e produzimos, que não é mais necessário que as coisas sejam feitas para quebrar para que as troquemos. O que leva à conclusão de que o termo obsolescência programada é que está obsoleto.

Uma mudança geral e de escala

O que acontece muitas vezes comigo é que me sinto prisioneira desse sistema; as opções existem mas ainda são poucas para fugir dele. Ações individuais têm sua importância, pois nos comunicamos quando compramos ou não compramos algo. Quando consertamos ou não algo. Essa comunicação informa o fabricante e o poder público sobre nossas escolhas e opiniões. Mas, apesar de importantes, tem que haver uma mudança de escala na maneira como produzimos e consumimos porque são poucos os que podem fazer escolhas no que diz respeito a consumo; tem mais gente que compra o que dá, como já disse a Rita Von Hunty.

A obsolescência deu certo num tempo em que sustentabilidade e reciclagem ainda não existiam. Para o contexto de hoje, não funciona mais

Essa mudança de escala, vem do consumidor, da indústria e do poder público, não tem muito como dar certo sem envolver todo mundo. Na Europa, tramitam propostas de lei para ter a informação da durabilidade no rótulo dos produtos ou para obrigar indústrias a produzir equipamentos com manutenção mais fácil e disponibilidade de peças de reposição por mais tempo, por exemplo. Em alguns países, existe também um estímulo fiscal pra quem usa metais preciosos oriundos de lixo eletro-eletrônico e as medalhas da olímpiada foram uma grande vitrine dessa possibilidade. Começam a ter ainda modelos de celular modulares, que permitem que você faça updates sem descartar o aparelho todo (é possível trocar só a câmera ou aumentar a memória, por exemplo). Aqui pelas Américas, a Microsoft apresentou no ano passado um plano de parar de usar plásticos descartáveis em suas embalagens até 2025 e zerar a produção de lixo em suas operações até 2030. O que é legal nesse caso é que, em vez de deixar a cargo do consumidor reciclar elementos de plástico, a ideia é que ela seja integrada na sua cadeia de produção criando “centros circulares”.

No campo das ideias, também tem gente pensando e escrevendo sobre uma outra lógica que fuja desse consumismo todo: o minimalismo, o decrescimento, o bem-viver colocam em dúvida essa ideia de que precisamos de tanta coisa. Tenho uma amiga muito querida que diz que “coisa junta pó”. É um pouco por aí. Será que precisamos ter tanta coisa? Além desses que citei, tem mais um tanto de gente fazendo essas perguntas. Me junto a elas.

As coisas começaram a ser feitas de modo que quebrassem para salvar a economia americana que estava no buraco. Deu certo naquele tempo em que conceitos como sustentabilidade e reciclagem ainda não existiam. Para o contexto do mundo hoje, não funciona mais. O que traz de volta meu otimismo é pensar que, apesar de estarmos afundados nesse sistema, ele teve um motivo, mas principalmente, teve um começo, como disse lá no início. Meu lado otimista pensa que se teve começo, pode ter fim. Até porque temos motivo de sobra para tomar um outro rumo e fazer um novo começo.

*As discussões aqui apresentadas estão alinhadas aos estudos deGiles Slade,Gordon Lippincott,Valquiria Padilha,Vance PackardeVictor Papanek. São baseadas nos estudos feitos para elaboração da dissertação de mestrado denominada”Obsolescência Programada, Práticas de Consumo e Design”,disponível para download. Os documentários”The Man Who Made us Spend“e”Comprar, Tirar, Comprar“também integram as inspirações deste artigo (e da pesquisa) e podem ser bons começos para quem se interessa pelo assunto.

LIA ASSUMPÇÃO é designer, sócia do janela estúdio e mestre em Arquitetura e Design pela FAU-USP. Não culpa ninguém por trocar de celular com frequêcia mas acredita que só uma iniciativa compartilhada entre indústria, poder público e consumidores conscientes pode alterar a lógica de consumo vigente