NFT: o que muda no mercado da arte? — Gama Revista
NFT o quê?
Icone para abrir
Sariana Fernández

2

Semana

O que muda no mercado da arte com o NFT?

Antes soltos pela internet, memes, gifs e outros produtos digitais ganham donos com direito a certificado. Mas não basta ser NFT para ser arte  

Gabriela Longman 13 de Junho de 2021
S_nft_ntf+arte_teaser-media
Sariana Fernández

O que muda no mercado da arte com o NFT?

Antes soltos pela internet, memes, gifs e outros produtos digitais ganham donos com direito a certificado. Mas não basta ser NFT para ser arte  

Gabriela Longman 13 de Junho de 2021

Quando o vídeo fez sua aparição no meio da arte em meados dos anos 1980, ninguém entendeu: era possível comprar peças em vídeo? Que sentido tinha? E principalmente: dava para chamar arte? Hoje, passados mais de 30 anos, instituições, galerias e colecionadores especializados nesse tipo de mídia estão instalados nos cinco continentes e artistas como Bill Viola são exibidos pelos mais importantes museus do mundo.

Um fenômeno análogo se desenrola agora com a arte digital. Com a chegada dos NFTs (sigla para non-fongible tokens, tokens não fungíveis) é fácil tornar-se o proprietário certificado de imagens mêmes, Gifs e outros produtos digitais. Na última semana, a obra “Caravans and Allegories” (2020), animação do brasileiro Gabriel Massan disponível unicamente em NFT dividia pela primeira vez o viewing room da SP-Arte – versão online da principal feira de arte do país – com pinturas de Guignard e esculturas de Tunga.

Gabriel Massan

“Caravans and Allegories” (2020), de Gabriel Massan, que participou da viewing room da SP-Arte com a galeria HOA

“Esse estranhamento inicial faz sentido: videoarte, streetart, performance enfrentaram resistência para entrar no circuito mais institucionalizado das artes”, lembra Fernanda Feitosa, diretora da SP-Arte. “Nós estamos num momento em que o digital vem tomando conta do nosso dia a dia, das relações pessoais e comerciais. Ao mesmo tempo há uma leva de designers gráficos e criadores que surgiram nos últimos dez anos. Não são artistas do nosso mercado tradicional e estavam em busca de um mercado para existir.”

Há uma leva de designers gráficos e criadores que surgiram nos últimos dez anos. Não são artistas do mercado tradicional e estavam em busca de um mercado para existir

Embora experiências existissem desde 2013, e com mais ênfase após 2017, o burburinho em torno dos NFts cresceu exponencialmente partir de março deste ano, quando a Christie’s tornou-se a primeira das grandes casas de leilão a colocar à venda uma peça totalmente digital. Intitulada “Everydays: The First 5000 Days”, a colagem de 5.000 imagens concebida pelo net artista e designer gráfico Beeple (a.k. Mike Winkelmann) surpreendeu pela escala de preços: alcançou a marca dos US69 milhões (aprox. R$ 350 milhões) e tornou-se a terceira obra mais cara de um artista vivo, atrás apenas do “Coelho” de Jeff Koons e do “Retrato de um Artista (Piscina com Duas Figuras)”, de David Hockney.

Beeple

“Everydays: The First 5000 Days”, a colagem de 5.000 imagens concebida pelo net artista e designer gráfico Beeple

De lá para cá, uma espécie de corrida do ouro parece ter se instalado. Principal concorrente da Christie’s, a Sotheby’s lançou seu próprio star digital, PAK, ao mesmo tempo em que pequenos, médios e grandes players do mundo da arte começaram a olhar para a nova tecnologia e suas potencialidades. No mês passado, a Galeria Uffizi, mais tradicional museu em Florença, começou a criar fac-símiles digitais de algumas de suas obras mais valiosas e vendê-los em NFT para arrecadar fundos — uma “pintura criptografada” de Michelangelo saiu por € 140.000.

“O NFT produz algo como uma aura. É só um certificado, capaz de conferir uma escassez artificial para formas de arte que são facilmente reprodutíveis”, sugere Lucas Bambozzi, artista multimídia e pesquisador no campo do digital desde os anos 1990.

Ele julga sintomático que o interesse de galerias pela arte digital se dê no momento da crise ocasionada pela pandemia. De fato, a última edição do relatório sobre o mercado de artes e antiguidades produzido pela Art Basel e UBS apontou a queda de 22% no volume das vendas globais em 2020, atingindo o nível mais baixo desde 2009, além do cancelamento de mais da metade das feiras previstas.

O NFT produz algo como uma aura. É só um certificado, capaz de conferir uma escassez artificial para formas de arte que são facilmente reprodutíveis

“É uma oportunidade, para não dizer um oportunismo, de mercado”, segue Bambozzi. Ainda sim, ele diz, é impossível ignorar o fenômeno: na última semana ele foi procurado por uma nova plataforma chamada Tropix, interessada em apresentar uma de suas obras em NFT. A ser lançado em breve, o negócio capitaneado por um advogado e investidor no ramo da tecnologia se apresenta como “o ecossistema de NFTs de artistas aclamados”.

Responsável pela obra do artista Massan à SP-Arte, a galeria HOA foi fundada há pouco mais de um ano por Igi Ayedun, artista multimídia de 31 anos. “A arte que é digital generated como 3D e animações faz parte da minha pesquisa há três anos”, conta. “A cripto ideia das coisas é presente entre nosso grupo de artistas por conta dos games, mas a pandemia fez com que todos os holofotes se voltassem para esse tipo de trabalho.”

Entenda como funciona

Os NFTs propõem uma forma de comercializar obras digitais garantindo aos compradores sua autenticidade. Do mesmo jeito que uma escritura registrada em cartório garante a posse de um imóvel, um NFT e seu registro em uma blockchain garante a propriedade sobre um arquivo digital (imagem, foto, vídeo, música, memes, entre outros) original.

“Como estes certificados digitais contém todas as informações de registro (como a autoria e data da criação), os criadores possuem uma ferramenta poderosa contra plágios e falsificações”, propagandeia o site NFtrend, auto-institulado “o primeiro marketplace 100% brasileiro de NFTs”. SuperRare, Nifty Gateway e Open Sea são algumas das grandes plataformas internacionais para esse tipo de operação.

O tipo de posse que os NFTs codificam não tem hoje respaldo legal, e de um dia pro outro o seu valor pode evaporar completamente

É importante frisar, no entanto, que obra em si não fica gravada na blockchain. Ao comprar um NFT, o que o colecionador obtém não é um arquivo de mídia, mas um registro que aponta para esse arquivo armazenado na internet.

“O tipo de posse que os NFTs codificam não tem hoje respaldo legal, e de um dia pro outro o seu valor (tanto social quanto econômico) pode evaporar completamente”, escrevem os artistas e pesquisadores Fernando Velzsquez e Gabriel Menotti em excelente artigo sobre questões estéticas e políticas implicadas nos NFTS. “A aceitação desses certificados de autenticidade digital está diretamente ligada à credibilidade do mercado especulativo de criptomoedas.”

A arte é só um pedaço

Do mesmo jeito que a videoarte representa apenas uma pequena parcela dos vídeos produzidos no mundo (que podem ser materiais institucionais, publicitários, documentais, videoclipes, informativos, etc etc), o universo dos NFTs extrapola, e muito, o campo das chamadas “artes visuais”.

No mês passado, um NFT do vídeo viral original conhecido como “Charlie Bit My Finger”, com quase 900 milhões de visualizações no YouTube, foi comprado por mais de U$ 760 mil. A indústria do esporte já tem a estrela do futebol americano Megan Rapinoe emitindo NFTs de cartões colecionáveis digitais e o site NBA Top Shot comercializa clipes oficiais da liga de basquete norte-americana. No contexto brasileiro, o Atlético Mineiro anunciou que vai entrar no mercado de NFTs com ilustrações de jogadores feitas pelo artista Pedro Nuin.

Assim, mais do que as transações e seus valores, o que começa a ser discutido agora é o real valor estético ou artístico das obras produzidas nesse novo formato.

Todo artista pode criar e registrar em NFT, mas criar e registrar em NFT não torna ninguém um artista

“Algum dia pode haver um Francis Bacon dos NFTs”, escreveu Jarry Saltz, mais influente crítico de arte do mundo. “Mas, até agora, os que chamaram atenção são não-originais em qualquer nível visual. São uma combinação kitsch e maçante, pop, ilustração surrealista, arte de calendário e protetores de tela psicodélicos.”

Para ele, os NFTs devem ser entendidos como uma ferramenta, tal e qual um pincel ou câmera. Ou seja: todo artista pode criar e registrar em NFT, mas criar e registrar em NFT não torna ninguém um artista.

Sariana Fernández/Gama

“Artistas são como xamãs que vivem nos limites de nossas aldeias, e às vezes eles aparecem com algo capaz de tirar o fôlego. A arte encontra uma maneira de ocupar quase qualquer material e acender qualquer ferramenta.” Há que se esperar, então, pelo Michelangelo dessa nova estética. Não existe um Van Gogh em cada esquina.

Por outro lado, o hype dos NFTs pode ser entendido como uma tomada de poder daquilo que a artista alemã Hito Steyerl define desde 2009 como “imagens pobres”: “É o fantasma de uma imagem, uma ideia errante, uma imagem itinerante distribuída gratuitamente, espremida por conexões digitais lentas […] A imagem pobre é um trapo ou um rasgo; um AVI ou JPEG, um lumpem proletário na sociedade de classes de aparências, classificadas de acordo com a sua resolução […] Sua genealogia é duvidosa. Seu nomes de arquivos são deliberadamente incorretos. Frequentemente, desafia o patrimônio, a cultura nacional ou mesmo o copyright.”

Novas linguagens, novas estruturas

Assim, se para alguns, o fenômeno não passa de uma bolha especulativa com esquemas de enriquecimento rápido, há quem diga que a mudança vá colocar em xeque os guardiões que tradicionalmente determinam o valor monetário e cultural da arte. O que pode surgir disso é um novo sistema voltado para compradores mais jovens, familiarizados com a gameficação, a estética digital e criptomoedas.

“Surge essa indústria onde as pessoas que ganharam dinheiro no digital precisam gastar dinheiro também no digital e ostentar riqueza nessa esfera”, sintetiza Feitosa.

Surge essa indústria onde as pessoas que ganharam dinheiro no digital precisam gastar dinheiro também no digital e ostentar riqueza nessa esfera

Do mesmo jeito que os compradores da arte moderna eram, em sua maioria, membros de uma nova burguesia industrial em ascensão, boa parte dos compradores dos NFTs são investidores no campo da tecnologia. Na venda da obra de Beeple, 64% das ofertas vieram de licitantes com menos de 40 anos e quem arrematou foi o indiano Vignesh Sundaresan, um empreendedor digital de 32 anos vivendo entre Emirados Árabes, Canadá e Cingapura. Perguntado se os preços do NFT, como o que ele pagou, estão alimentando uma bolha especulativa, ele respondeu ao Finantial Times: “Quando alguém paga US $ 400 milhões por uma obra de arte física, as pessoas riem disso também “.

Entre muitos negócios, Vignesh é o fundador do Metapurse, que afirma ser o maior fundo NFT do mundo. A principal questão, então, é que a presença e o prestígio dos novos artistas é capaz de conferir legitimidade e agregar capital cultural ao sistema criptofinanceiro: “É do interesse destes criptomilionários não apenas diversificar seus ativos digitais, como também inflacionar a importância do mercado para ampliar a sua adoção. Para esses atores, cada milhão gasto num NFT é um investimento direto na propaganda de seus próprios negócios”, atentam Menotti e Velázquez.

O que talvez justifique o título de um artigo recente da New York Magazine sobre o tema: “Você não está louco. É o dinheiro que está: bem-vindo ao futuro degenerado, não fungível, memeificado, criptodenominado das finanças.”