Bianca Santana: “A maternidade é um tema coletivo dos mais urgentes” — Gama Revista
Mãe sofre?
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Semana

"A maternidade é um tema coletivo dos mais urgentes"

Há quase 500 anos, as mulheres negras são as que cuidam neste país. E falar de quem cuida é urgente, escreve a pesquisadora e colunista da Gama

Bianca Santana 09 de Maio de 2021

“A maternidade é um tema coletivo dos mais urgentes”

Bianca Santana 09 de Maio de 2021
Isabela Durão (Foto: Caio Franco)

Há quase 500 anos, as mulheres negras são as que cuidam neste país. E falar de quem cuida é urgente, escreve a pesquisadora e colunista da Gama

Restos do almoço na mesa, em meio a livros didáticos, folhas de atividades, raspas de lápis apontados, canetinhas coloridas sem tampa. Uma criança de cada lado, com a própria tela e fone de ouvido. Uma começa a chorar porque caiu da chamada-aula e não consegue voltar. A outra diz que precisa de ajuda para fazer, com um pedaço de papelão, uma raquete de pingue-pongue para a aula de educação física. A mais velha joga videogame aos berros no quarto. O pai dá aula para mais de uma centena de estudantes de graduação em outro cômodo. Na ponta da mesa, a mãe ignora uma pontada no peito para tentar se concentrar na revisão de uma planilha; na certeza de que estamos em situação infinitamente melhor que a da maior parte das pessoas.

Protegida pelo isolamento social, salário pago em dia, boa alimentação, moradia digna, acesso a água, luz e esgoto, estou exausta. Se tivesse respondido à pesquisa Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia, realizada pela Sempreviva Organização Feminista e pela Gênero e Número — como fizeram 2.641 mulheres — estaria entre as 72% que informaram um aumento na necessidade de monitoramento e companhia de crianças, idosos ou pessoas com deficiência. No meu caso, de crianças. A sobreposição do tempo de cuidar ao tempo do trabalho remunerado, que sempre foi uma realidade das mulheres, está exacerbada desde março de 2020. E até mesmo o trabalho remunerado tem demandado mais de 41% das que responderam à pesquisa e seguiram trabalhando durante a pandemia. De mim também.

Enquanto escrevo este texto, um fragmento a cada pequena oportunidade de concentração, me pergunto se deveria mesmo fazê-lo. Quem é que não sabe que está muito difícil para quem tem crianças pequenas? E para quem está fácil? Talvez fosse melhor colocar a roupa suja na máquina ou iniciar o artigo acadêmico pendente desde que defendi o doutorado, em maio do ano passado. Eu mesma me respondo que não escrever sobre maternidade na pandemia coloca o cuidado, mais uma vez, na esfera privada, quando este é um tema coletivo dos mais urgentes. Além de cuidar, é preciso narrar o cuidado para que possamos elaborar, a muitas vozes, o buraco em que estamos. Mostrar, permitir que se veja, é uma premissa da teoria feminista.

Além de cuidar, é preciso narrar o cuidado para que possamos elaborar, a muitas vozes, o buraco em que estamos

A falta imensa da escola para que as crianças aprendam, brinquem com outras crianças, e sejam cuidadas fora de casa por algumas horas se justifica pela necessidade de conter a propagação do vírus. Desde 16 de março de 2020 meus dois filhos e minha filha não foram à escola presencialmente. E tenho dificuldade em compreender a decisão política de expor profissionais da educação, seus familiares, e as próprias crianças ao contágio do coronavírus. Na minha casa, mãe, pai — e avó alguns dias por mês — fazemos o possível para explicar a divisão com dois algarismos, a estrutura das células e a separação silábica, em meio ao caos.

Nas casas onde há apenas um adulto; ou os adultos não têm escolarização; ou a corrida para colocar comida na mesa toma cada minuto, as crianças são ainda mais penalizadas, é evidente. Mas não seria possível um pacto coletivo para proteger o máximo de pessoas do contágio, e depois cuidar de ensinar a todas as crianças aquilo que não aprenderam sem escola? Não, infelizmente. É cada núcleo familiar ou cada comunidade por si, com os serviços ou as redes solidárias que estiverem ao alcance. E talvez aí, na busca de soluções individuais ou restritas — não coletivas — esteja nosso problema. Mesmo antes da pandemia.

Resumindo toscamente a história da divisão sexual do trabalho no capitalismo europeu: homens faziam o trabalho remunerado fora de casa, mulheres, o trabalho reprodutivo e de cuidados, não remunerado, dentro de casa. Mas aqui, onde ainda vivemos o colonialismo racista, o trabalho reprodutivo e de cuidados é feito por mulheres negras e pobres. Quando a mulher branca passa a ocupar postos no mercado de trabalho, a filha e a neta das negras escravizadas são as empregadas domésticas que cuidam da limpeza, da cozinha, das crianças, dos doentes, dos idosos. Assim, homens seguem sem lidar com o trabalho indesejável e a classe média resolve, com baixa remuneração e subalternidade, aquilo que mulheres brancas e homens não podem ou não querem fazer.

Mulheres negras, por sua vez, limpam a casa da patroa no turno do trabalho mal remunerado e a própria casa nos momentos de descanso e lazer. Era assim com a minha mãe, mesmo depois que deixou de ser empregada doméstica: três ou quatro horas por dia no transporte público, nove horas vendendo pregos pelo telefone, faxina no apartamento do conjunto habitacional de noite e nos finais de semana, enquanto me tomava a tabuada. Minha avó, depois da casa da patroa, se dividia entre cuidar da própria casa e dos próprios filhos, e lavar e passar roupas para fora e garantir uma remuneração um pouco melhor. Conectada à história das mulheres da minha família, não posso reclamar do meu trabalho no computador, e da divisão das tarefas domésticas com meu companheiro. Mas se o cuidado fosse um tema central, ele não precisaria ser peso para nenhuma de nós. Lavanderias comunitárias e cozinhas coletivas, por exemplo, são reivindicações antigas do feminismo popular, antirracista e anticapitalista.

Mulheres negras, por sua vez, limpam a casa da patroa no turno do trabalho mal remunerado e a própria casa nos momentos de descanso e lazer

“Um novo paradigma de sustentabilidade da vida humana é afirmado como eixo para que se garanta o equilíbrio entre produção e reprodução, visando a reorganização do trabalho doméstico e de cuidados para que este deixe de ser considerado uma responsabilidade individual que as mulheres devem realizar no interior das famílias”, escreveu Tica (Renata) Moreno, no artigo “A economia na agenda política do feminismo”, de 2014, a partir de um texto publicado anteriormente por ela e Nalu Faria, seis anos antes do coronavírus, com formulações que existem há mais de duas décadas.

Em 2015, a Carta das Mulheres Negras nos ofereceu cerca de 30 páginas de respostas coletivas consistentes a nossos problemas históricos, agravados nesta pandemia. Um dos meus trechos preferidos oferta: “Na condição de protagonistas da proposição de outra forma de ver e intervir no mundo, sintetizada nos fundamentos do Bem Viver, oferecemos ao Estado brasileiro nossas experiências historicamente acumuladas como forma de construirmos coletivamente uma outra dinâmica política”. Há quase 500 anos, as mulheres negras são as que cuidam neste país. Ao cuidar, e ao narrar o cuidado praticado, mulheres negras têm formulado táticas e estratégias políticas que permitem a pretos e pardos, apesar do genocídio negro, sermos 56,10% da população brasileira.

Há alguns meses circulou na internet um meme que provocava: se o Brasil fosse presidido por uma mãe, já estaria todo mundo vacinado, de banho tomado e pronto para dormir. Se essa mãe fosse uma mulher negra ativista do movimento negro, além da vacina, do banho e do pijama cheiroso, estaria todo mundo de barriga cheia também, até mesmo os 116 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar no país.

Bianca Santana pesquisa memória e a escrita de mulheres negras. É jornalista, escritora, colunista da Gama e autora de ‘Continuo Preta – A vida de Sueli Carneiro’ (Companhia das Letras, 2021) e ‘Quando Me Descobri Negra’ (SESI-SP, 2015).