Como as florestas ajudam a agricultura e o clima — Gama Revista
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Conversas

'Tudo está conectado': como as florestas ajudam a lavoura a produzir

Estudiosa da relação de floresta, agricultura e clima, Ludmila Rattis fala de como o homem constrói barreiras entre ele e o meio ambiente

Leonardo Neiva 19 de Setembro de 2021

‘Tudo está conectado’: como as florestas ajudam a lavoura a produzir

Leonardo Neiva 19 de Setembro de 2021
Energy Films Library via Getty Images

Estudiosa da relação de floresta, agricultura e clima, Ludmila Rattis fala de como o homem constrói barreiras entre ele e o meio ambiente

A vida cotidiana da maioria das pessoas está tão distante da natureza que o ser humano já não suporta sentir o próprio cheiro e nem sabe mais o que é que ele está comendo. “Nós criamos subterfúgios para nos desconectar”, explica a pesquisadora Ludmila Rattis, especialista no estudo da relação das florestas com a lavoura — e o quanto a primeira ajuda na produtividade da segunda.

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“Criamos muros e janelas para nos defender do vento, da violência, de temperaturas altas e baixas, e acabamos nos distanciando da natureza em si”, afirma a pesquisadora, que trabalha com ecologia espacial no Centro de Pesquisas Woodwell Climate, em Massachussetts, e no Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), de Brasília.

Antes, ela costumava dividir seu tempo entre o Brasil, onde faz pesquisas de campo no interior do Mato Grosso e na fronteira agrícola amazônica, e os Estados Unidos, onde vai para trabalhar e analisar os dados que recolhe por aqui. Desta vez, impossibilitada pela pandemia de voltar a pisar em solo norte-americano, acabou alugando uma chácara na Serra da Canastra, onde planta sua própria comida e vem cuidando de seus novos pets rurais.

Ela também continua por lá mesmo seu trabalho de análise dos dados ambientais, estudando assuntos como a seca, as dificuldades de irrigação das plantações e como a escassez de frutos tem impactado espécies animais na natureza.

Athos Soares/Viva Canastra

Por trabalhar analisando ecossistemas inteiros, Ludmila sabe como até o que parece pequeno pode ter grande impacto em outros aspectos do ambiente e reforça a certeza de que, na natureza, tudo está interligado — uma noção que, no entanto, ainda é difícil de entender para boa parte das pessoas. “Não basta parar o desmatamento, precisamos criar mais habitat para as espécies que ainda estão resistindo.”

A seguir, ela fala com Gama sobre a relevância de preservar o ecossistema para elevar a produtividade agrícola, a criação de políticas públicas que aproximem a população do meio ambiente e também destaca sua recente criação de galinhas na chácara onde mora, na Serra da Canastra, que representou um retorno ao ambiente de roça em que ela cresceu.

Uma floresta em pé é um aparelhinho de ar condicionado que o produtor tem do lado da área de cultivo

  • G |O contato com a natureza influenciou sua escolha de profissão?

    Ludmila Rattis |

    Há algum tempo, participei de um curso de campo chamado “Ecologia da Floresta Amazônica”, com alunos de pós-graduação em ecologia, que foi o primeiro do país. São 30 dias de imersão em diferentes lugares da Amazônia. No primeiro dia, as pessoas estavam contando porque escolheram aquela profissão. Eu me senti tão mal. Todo mundo “ah, eu amo bichinhos, amo plantinhas”. Quando chegou a minha vez, contei que tinha pego um catálogo de graduação, com a descrição das disciplinas de cada curso e achei lindas as disciplinas de biologia. Apesar de ter crescido na roça, foi uma decisão muito consciente, não foi inspirada só em paixão. Já tinha ficado super inclinada para a biologia, até que um dia, andando na rua, vi uma abelha numa flor vermelha. Olhei e quis saber por que a abelha estava naquela flor. E foi essa pergunta que me fez entrar de vez nesse mundo.

  • G |Onde você vive hoje?

    LR |

    Hoje vivo na roça por causa da pandemia, estou fazendo home office. Aluguei uma chacarazinha em São João Batista do Glória (MG), que fica no pezinho da Serra da Canastra. Ali eu planto minha comida, umas flores e crio minhas galinhas — que eu não como, são só para produzir ovos. Faço um trabalho bem sutil também de recuperação da mata ciliar que existe por lá. Estou plantando algumas forrageiras para que, quando a chuva chegar, não assoreie ainda mais um riacho que tem nos fundos de casa.

  • G |Quando você escolheu estudar biologia, já pensava em trabalhar com ecologia espacial?

    LR |

    Pensava em trabalhar com a interação entre animais e plantas. Comecei na graduação, na época do boom do biodiesel. Eu estudava a biologia floral e reprodutiva das plantas de interesse econômico para a produção do biodiesel, especificamente girassol e nabo forrageiro. Plantava numa fazendinha experimental da faculdade e, quando florescia, passava o dia inteiro lá para ver quais eram os visitantes. Muita abelha, besourinhos, umas borboletinhas, mariposas. E anotava o comportamento deles, quanto tempo passaram ali, se estavam pegando néctar, polinizando, ou se ficavam só de bobeira se protegendo de um inimigo. No mestrado, estudei como a fragmentação e o desmatamento afetavam a comunidade de vespas de figo em três lugares no estado de São Paulo: Ribeirão Preto, que é super desmatada; Marília, que tinha em torno de 20% de cobertura vegetal; e Pontal do Paranapanema, com uns 40%. No final, uma pesquisadora publicou que essas vespas conseguem viajar mais de 100 quilômetros por dia, porque são impulsionadas pelo vento. Então, a fragmentação não estava afetando tanto essas vespas por essa capacidade imensa de viajar.

  • G |Qual é o seu trabalho como ecóloga espacial?

    Ludmila Rattis |

    Existem vários padrões diferentes para desmatar uma área. Você pode deixar montinhos de floresta, uma floresta enorme no cantinho da paisagem etc. São muitas métricas para entender o padrão de desmatamento e de fragmentação. O ecólogo espacial estuda como os elementos da natureza interagem um com o outro. Se tenho um campo de soja e um pequeno fragmento de floresta, como uma coisa afeta outra? Uma espécie de planta ou de besouro pode afetar aquela soja? Ele a come ou é um inimigo natural de uma possível praga? Quando comecei a trabalhar no Ipam, passei a fazer esses cálculos a nível de ecossistema. Você identifica a presença de um fragmento florestal e o que ele faz com a temperatura, o ciclo do carbono e da água, e como isso vai afetar o entorno. Foi quando comecei a trabalhar com a relação entre desmatamento, clima e produção agrícola.

  • G |O desmatamento costuma ser causado para dar espaço à produção. Como acontece a relação entre floresta e agricultura? Os produtores costumam enxergar essa questão de forma errada?

    LR |

    Hoje o desmatamento acontece por pressão do mercado ou por uma decisão pessoal. O produtor, que não consegue elevar sua produtividade no espaço que já tem e sofre pressão para aumentar a produção, vai querer aumentar a área plantada. O lado da equação que geralmente é negligenciado é uma informação científica à qual grande parte dos produtores não dá crédito. Eles não enxergam uma relação entre estabilidade climática e floresta. A mudança de comportamento ainda não ocorreu porque é uma informaçao científica relativamente recente. É muito difícil para qualquer pessoa mudar os hábitos. A floresta dá uma estabilidade climática para a região porque uma árvore média bombeia de 300 a 500 litros de água por dia na atmosfera. Ao fazer isso, além de garantir que a água está seguindo seu ciclo natural, a árvore rouba tanto calor do ambiente que acaba resfriando-o. Isso nos favorece num cenário em que o mundo está aquecendo pelos impactos do efeito estufa. Uma floresta em pé é um aparelhinho de ar condicionado que o produtor tem do lado da área de cultivo.

Quanto mais floresta, maior a produtividade

  • G |Qual a solução para conciliar o desenvolvimento da agricultura brasileira e a preservação das florestas?

    LR |

    Existe toda uma área de estudo — e é meu sonho de princesa trabalhar só com isso —, chamada Climate Proof Landscapes (paisagens à prova de mudança climática). É basicamente desenhar paisagens para ter campos agrícolas e florestas em pé. O problema é que é um campo de estudo novo e sem tempo de se desenvolver. Não podemos mais desmatar porque a capacidade de regular o clima não depende só de a floresta estar em pé. Ela também precisa ser saudável. Do jeito que desmatamos rápido, estamos favorecendo a degradação florestal. Uma floresta sem saúde não desempenha suas funções básicas, assim como a gente. Então não conseguimos mais sustentar o desmatamento. Se quem desmata não está interessado nos resultados que encontramos hoje, é muito distante a possibilidade de incorporarem esse conceito de paisagens. Ainda assim, como cientista, é importante trabalhar simulações, entender o melhor desenho de paisagem para cada lugar e propor soluções.

  • G |Tivemos recentemente um relatório do IPCC com notícias tenebrosas sobre o clima da Terra. Ao mesmo tempo, o desmatamento na Amazônia segue a todo vapor. Como isso deve afetar a agricultura do Brasil?

    LR |

    O relatório diz que a temperatura global vai subir pouco mais de 1ºC. Só que, no Brasil, existem áreas em que, se continuarmos na mesma toada, vai subir uns 6ºC. Isso é insustentável para a agricultura como a conhecemos hoje. Um estudo que fiz foi aceito na revista Nature Climate Change e deve ser publicado em breve. Ele mostra que 28% das fazendas de soja e milho do Mato Grosso, Tocantins, Piauí e Bahia — a fronteira agrícola do cerrado, onde a agriculta tem se expandido horrorosamente — já estão fora do ideal climático para a produção. Não quer dizer que não vão mais produzir, mas vão produzir menos do que poderiam. Em dez anos, deverão ser 50%. Em 30, 70%.

  • G |Como a pandemia afetou seus trabalhos de pesquisa?

    LR |

    Fui para a base de pesquisa do Ipam no Mato Grosso, em Querência, no início de março. Estava lá quando a covid-19 chegou ao Brasil. Não pude voltar aos Estados Unidos e acabei ficando por ali até 23 de maio. Só vim embora porque um dos pesquisadores que estavam com a gente pegou leishmaniose, então minha pesquisa de campo foi interrompida dessa maneira. Mas meu trabalho de computação e análise de dados não foi interrompido.

  • G |O que constitui esse trabalho?

    LR |

    Eu estudo os limites climáticos no Brasil da agricultura de sequeiro, que é irrigada pela chuva, caso de 90% da produção do país hoje. O que eu faço é quantificar as áreas sujeitas à seca, o quanto isso afeta a produção agrícola, se a irrigação artificial mitigou esses efeitos e para onde essa agricultura está se expandindo. Hoje, 60% da produção de energia no Brasil acontece em hidrelétricas. Como temos um desequilíbrio no ciclo de água, existem áreas em que deve faltar energia elétrica. E, sem energia, não vai ter água para irrigar artificialmente. Com uma aluna de mestrado, também tenho um estudo para entender o quanto a floresta afeta a produtividade da lavoura. Já vimos que, quanto mais floresta, maior a produtividade, mas também queremos entender as forças motrizes por trás dessa relação. Outra pesquisa é para entender como a seca e o desmatamento afetam a produção de frutos na floresta e as espécies que sofrem com isso. Analisando dados de 2004 até 2021 sobre a queda de frutos das árvores, já deu para ver que existe uma mudança. A ideia é descobrir quais bichinhos vão ficar sem comida e qual o futuro dessas espécies.

Não basta parar o desmatamento, precisamos criar mais habitat para as espécies que estão resistindo, enquanto a primavera não vem

  • G |Existe uma falta de contato do público com a natureza hoje, que gera um desinteresse em questões ambientais?

    LR |

    Totalmente. Nem acho que a pessoa tem que pisar na terra para sentir a natureza. Basta olhar os sinais do corpo. Não toleramos nosso próprio cheiro. Comer algo sem saber de onde vem é sintoma da nossa desconexão com a natureza. Outro dia, meu psicólogo estava falando do fato de as mães humanas serem as únicas que não sabem o que fazer com a cria. Minha galinha está com seis pintinhos, e ela tem seu instinto porque está o tempo todo conectada à sua natureza. Nós criamos subterfúgios para nos desconectar. O que estamos colhendo agora são frutos disso. Criamos muros e janelas para nos defender do vento, da violência, de temperaturas altas e baixas, e acabamos nos distanciando da natureza em si. O Ailton Krenak reflete sobre essa ideia que temos de que realmente jogamos as coisas fora, de que existe uma externalidade. Não tem como jogar nada fora. E no nosso lixo ainda tem copo plástico, canudinho… Isso mostra uma falta de conexão absurda. Para muita gente, é como se fosse loucura vir falar de desmatamento hoje. Ainda existem muitos comportamentos que precisam mudar.

  • G |Há também um movimento nascendo de buscar um retorno à natureza, impulsionado em parte pela pandemia. Você vê isso ganhando alguma força?

    LR |

    Infelizmente, ainda é muito elitista. As famílias que decidem se mudar para o interior ganham mais de um salário mínimo por cabeça, uma realidade que não é a da maioria. Hoje tem gente voltando a cozinhar com lenha, mas não é para ter mais conexão com a natureza, e sim pelo preço do gás de cozinha, por necessidade. Tudo isso poderia ser política pública. Imagine ter um fomento à formação de comunidades. Investir em terrenos com umas cinco famílias morando juntas e produzindo a própria comida, uma espécie de retorno ao comportamento tribal. O ato de preparar a terra, plantar, cuidar, regar e colher ajuda a ter consciência do que estamos ingerindo. Isso enriquece a experiência e também alimenta a mente. A gente resolveria o problema da segurança alimentar, da educação, de pais que não têm com quem deixar as crianças…

  • G |Hoje ouvimos relatos de crianças sofrendo com ecoansiedade e medo pelo futuro do planeta. Ao mesmo tempo, não existem grandes políticas públicas para educar sobre o meio ambiente. Dá para ter esperança de que as próximas gerações vão se atentar mais a essa questão?

    LR |

    Com certeza, mas não por consciência, e sim por necessidade. Hoje ainda é uma opção jogar coisas fora, desperdiçar água, não saber a procedência do que estamos comendo. Daqui a um tempo, nosso leque de oportunidades vai diminuir muito, por causa dos recursos naturais que estão sendo exauridos.

  • G |O que precisa mudar para proteger os biomas brasileiros?

    LR |

    Estamos vivendo uma extinção em massa hoje por causa da perda de florestas, mudança climática e pressão pela caça, entre várias coisas. No passado, na América do Sul, existia a megafauna [animais terrestres de grandes proporções], com preguiças gigantes, aves muito maiores e tatus enormes. Hoje em dia, o único representante da megafauna que restou por aqui é a anta. A anta é um grande dispersor de sementes. Ela come bastante em áreas preservadas e gosta de caminhar por áreas abertas. Ao fazer isso, ela despeja as sementes ao fazer cocô, agindo como jardineira da natureza. E, por ter uma boca muito grande, consegue comer sementes maiores. Na base de pesquisas do Ipam em Mato Grosso, elas comiam mangas e iam fazer cocô no meio da mata. Depois, a gente via aquele monte de pezinhos de manga nascendo no meio da floresta. Ela está fazendo um trabalho de reflorestamento que, se fosse pago, precisaria de um investimento de milhões. Tudo está muito interligado. Não basta parar o desmatamento, precisamos criar mais habitat para essas espécies que ainda estão resistindo, enquanto a primavera não vem.

  • G |Você sente que as pessoas têm dificuldade de entender essa questão de que, na natureza, tudo está conectado?

    LR |

    Faço bastante trilha aqui na Serra da Canastra, onde passam pessoas que supostamente amam a natureza. Ainda assim, vejo alguns chutando fungos orelha de pau, que crescem nos troncos. Eles não têm nenhuma noção de que o fungo está decompondo a madeira. Isso vai fertilizar o solo para que as próximas plantas venham, fazendo a manutenção da mesma floresta em que a gente anda. Não sei se é uma falha na educação, mas existe uma deficiência sim em perceber que tudo está conectado.

  • G |E como você tem encarado esse seu retorno para o campo?

    LR |

    Cresci no município de Passos (MG), mais na roça do que na cidade. Foi um trauma enorme de infância ter saído de lá, não superei até hoje. O contrato da chácara onde moro vai vencer agora, e já estou procurando outra. Encontrei uma em que vou poder tirar leite da vaca todos os dias. Meu pai me falou para não pegar essa obrigação, mas achei linda a história de acordar cinco da manhã para tirar leite. Quando era pequena, tinha galinhas lá em casa, mas é a primeira vez que tenho as minhas. Elas são pets, só dão ovos e alegria. Às vezes, quando estou numa reunião, o galo Felipinho canta e as pessoas se assustam. Os americanos acham o máximo eu criar um galo em casa.

Athos Soares