Uma conversa com Danilo Miranda, diretor do Sesc SP: "Sem diálogo não temos saída" — Gama Revista
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Conversas

“Sem diálogo, não temos saída”

Em tempos de polarização, Danilo Miranda defende o aprofundamento do debate. Há mais de 30 anos à frente do Sesc São Paulo, ele vê a cultura e a educação como remédio para curar nossas desigualdades e desavenças

Bruna Bittencourt 05 de Julho de 2020
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“Sem diálogo, não temos saída”

Em tempos de polarização, Danilo Miranda defende o aprofundamento do debate. Há mais de 30 anos à frente do Sesc São Paulo, ele vê a cultura e a educação como remédio para curar nossas desigualdades e desavenças

Bruna Bittencourt 05 de Julho de 2020

“É preciso dialogar.” Essa é uma resposta recorrente de Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc-SP, quando questionado sobre possíveis cortes de orçamento à instituição, que, com frequência voltam à pauta do governo e de parlamentares. “Sem diálogo, não temos saída. E sem cultura e educação, menos ainda”, diz.

É um orçamento de pouco mais de 2,2 bilhões anuais (que deve sofrer ajustes por conta da pandemia), vindos de contribuições compulsórias do empresariado, arrecadadas pelo governo, que proporciona uma ampla programação cultural, esportiva, além de serviços de saúde e alimentação (foram mais de 48 mil ações, desdobradas em várias sessões, em 2019), em 44 unidades no estado de SP, por onde passaram 30 milhões de pessoas no ano passado.

Danilo, 77 anos, chegou ao Sesc em 1968, depois de desistir da vida eclesiástica e cursar filosofia. Começou como orientador social (o equivalente hoje a um animador cultural) no campo da cultura e do esporte, em unidades móveis do Sesc pelo estado – um embrião do trabalho atual da instituição. Casou, teve duas filhas e, em 1984, se tornou diretor do Sesc no estado de São Paulo. Nestes anos de atuação, recusou alguns convites para ingressar na política e segue uma unanimidade no meio cultural.

Com suas unidades fechadas por conta da pandemia, o Sesc migrou (e adaptou) parte de sua programação cultural, do teatro à dança, para lives, enquanto Danilo segue há três meses em sua casa, no bairro do Pacaembu, em São Paulo, onde “mal vai à calçada”. “Estou cumprindo a minha missão do jeito que eu posso”, diz, com o espírito de jesuíta que foi. Da sua casa, conversou com Gama sobre a importância do diálogo, da escuta e da convivência nos tempos polarizados que estamos atravessando.

Falta diálogo seja no campo das esquerdas, seja no campo de uma direita menos fascista, mais esclarecida, liberal ou mais capaz de entender a realidade

  • G |O senhor sempre se mostra disposto a debater com partes das quais discorda. Na sua opinião, estamos pouco abertos ao diálogo hoje?

    Danilo Miranda |

    Cada vez com mais clareza, percebe-se que as pessoas precisam trocar informações, aprofundar o conhecimento, debater sobre os fatos, seja no plano da política, da cultura, da economia, o que for. Sem conhecimento, não há condições de dar um passo à frente. E somente através do diálogo você obtém informação sobre o outro ponto de vista, sobre o confronto com o seu e, sobretudo, uma exatidão das informações que são oferecidas. O maior inimigo da verdade nem sempre é a mentira. Muitas vezes, são convicções muito arraigadas, como diria Nietzsche. Então, o diálogo oferece condições para que você possa entender o outro lado, de uma maneira mais clara. E isso, sem dúvida, é o que está faltando nos grupos mais variados, especialmente na política, seja no campo das esquerdas, seja no campo de uma direita menos fascista, mais esclarecida, liberal ou mais capaz de entender um pouco a realidade. Falta diálogo, sim, porque falta conhecimento, informação, aprofundamento das questões.

  • G |Em entrevistas, quando o senhor é questionado sobre possíveis cortes orçamentários ao Sesc, costuma responder que espera que a outra parte reflita, entenda melhor a importância dos serviços oferecidos pela instituição. Como tem sido esse diálogo? Tem surtido efeito?

    DM |

    Temos carências profundas num país como o nosso, especialmente no campo da educação/cultura, que é o motivo das nossas desigualdades, das dificuldades profundas que temos. Na medida que temos isso claramente, todas as organizações, instituições, todas as possibilidades que existem na sociedade para colaborar no sentido de aumentar esse nível de conhecimento, têm que ser valorizadas, exploradas. Para isso, a universidade, a escola regular, as instituições que lidam com essa realidade, como é nosso caso e também o do mundo da cultura. Combater tudo isso significa trabalhar a favor do atraso, ir para trás. Nesse sentido, somente o conhecimento, o diálogo, a informação que perceba a importância de um trabalho como o nosso e de outras instituições como a nossa poderá de alguma forma superar esse mal-estar, essa ideia de cortar, de prescindir. Isso tem que ser abandonado porque é combater de alguma forma a própria história, a evolução natural de um país. Então, é nesse sentido que falo: sem diálogo, nós não temos saída. E sem cultura e educação, menos ainda. E aí, falta conhecimento, falta diálogo, falta aprofundar essas questões todas.

  • G |Essa abertura ao diálogo tem a ver com seus tempos de seminarista? O que o senhor traz de aprendizado dos seus estudos religiosos?

    DM |

    [Risos] É possível. A escuta, mais do que a fala, muitas vezes tem sua importância em determinados momentos da história. Por exemplo, entender as raízes da nossa desigualdade é, para mim, um dos fatores mais profundos que explicam a nossa situação. Ela está presente em todos os aspectos da nossa vida: na economia, na política, na cultura, na questão do racismo, da mulher, LGBT, em todas as questões que há essa inaceitação da diversidade. Isso é histórico, vem do nosso colonizador português. Então, as raízes das desigualdades brasileiras são um tema que tem que estar presente para qualquer pessoa que pretenda minimamente procurar entender a nossa realidade. Claro que a minha formação tem a ver com tudo isso, desde lá atrás, desde de o Golpe de 64, quando despertei, de alguma forma, para a realidade da vida política, para a vida mais adulta.

  • G |Falando em diversidade, o Sesc é um espaço que, como o senhor mesmo já disse, é frequentado pelo morador de rua ao executivo.

    DM |

    A diversidade, para nós, está na raiz. Alguém pergunta: “Você tem um programa especial para o público LGBT, negro ou cigano?”. Talvez não tenhamos tão claramente. O que a gente tem é uma política de envolvê-los permanentemente, de maneira absolutamente natural. Não vou botar um rótulo na cara deles, não vou chamar a atenção para isso, não vou fazer um programa para que haja uma ação específica voltada para a população – não gosto muito da palavra – afrodescendente. Quero eles integrados de maneira absolutamente natural, envolvido naquilo que nós fazemos, no nosso dia a dia. É claro que isso é um pouco utópico da minha parte e pode trazer algumas questões de vez em quando, por conta de aceitação. Mas, em geral – isto é um dado interessante –, na medida em que você cria um entorno no qual essas questões são quase impossíveis de serem levadas em conta, a naturalização vem de maneira tranquila. Não forço, de forma alguma, um comportamento especial, diferenciado. Como disse [o advogado, filósofo e professor] Silvio Almeida, no Roda Viva, qualquer ação que explore de maneira inadequada a questão do racismo reforça, muito mais do que trabalha contra isso. E a gente tem muito cuidado com isso.

  • G |Ao longo dos anos, o senhor acompanhou diversas crises na política brasileira. Este momento de extrema polarização lhe parece mais grave do que outros?

    DM |

    Acho que tenho mais elementos hoje para entender a gravidade do momento que vivemos. Em 1964, bem jovem, não tinha condições de ter uma visão tão profunda de tudo. A impressão que me dá é que existem pontos comuns [entre os dois momentos], por incrível que pareça. A comparação que se faz é que naquela época foi mais radical. Houve muitas manifestações na rua, sinais mais evidentes de mudança e ruptura constitucional. Hoje, uma coisa que assusta profundamente é que haja uma transformação política com ruptura constitucional. Então, sob esse ponto de vista, aquele momento foi mais radical. Do ponto de vista da essência, assusta 50 anos depois ainda ter gente que pensa que o fascismo é a melhor solução e que conseguiu chegar lá em cima. Isso me assusta muito mais. Tudo isso dá um empate técnico entre os dois momentos. Mas acho que isso não vai prosperar de forma simples. Esses movimentos que estão surgindo agora, Somos 70%, Basta!, Estamos Juntos, revelam uma capacidade de modernização, ainda muito iniciante, mas que poderá crescer e evitar qualquer coisa pior no futuro.

  • G |O que é inegociável para o senhor, nas suas dinâmicas de trabalho, nas suas relações?

    DM |

    Qualquer coisa que tenha a ver com uma posição fascista, racista, de desrespeito à liberdade, à democracia. Quem lida com cultura de maneira ética, ampla, numa perspectiva de interesse público, não pode tergiversar, não pode cooptar. Nós temos que trabalhar no combate, denunciando, provocando, discutindo, aprofundando e dialogando – voltamos ao diálogo. Porque isso é antinatural, não é a favor do ser humano. ‘Ah, mas o homem só se impõe à força.’ Quem se impõe dessa forma pode ser muito bem- sucedido durante um tempo, mas não a vida toda.

  • G |Da cultura ao esporte, o Sesc São Paulo oferece serviços e opções de lazer a muitas pessoas, por preços módicos ou gratuitamente. O impacto da instituição na sociedade é indiscutível. Por que não conseguimos ter isso em larga escala no Brasil?

    DM |

    É a minha luta permanente nesses 50 anos que estou dedicado ao Sesc e em todas as demais instituições nas quais tenho algum tipo de convivência – sou membro de conselhos, direções, de comissões. A grande perspectiva sempre foi ter os recursos, usá-los devidamente, da melhor forma, para prestar o melhor serviço possível, com prestação de contas, fiscalização pelos órgãos de controle, Tribunal de Contas. Tudo isso é formal, ou seja, com fiscais. Essas coisas estão em dia. Há bilhões e bilhões de recursos que foram utilizados no decorrer desses anos todos. Essa perspectiva de cumprir a missão foi sempre algo profundamente arraigado em mim. Não é uma questão de princípios morais, é uma questão de bom senso, de fidelidade, dos fundamentos de respeito ao ser humano, só isso. Você está inserido pela organização pública, não pode tirar vontades pessoais disso. Até para comprar medicamento e ferramentas para combater a Covid-19, para salvar vidas, tem gente roubando recursos.

  • G |Falando em cumprir missão, o senhor cogita aposentadoria?

    DM |

    Permanentemente, sou um homem de 77 anos, devia estar cuidando um pouco dos prazeres da vida pós-trabalho. No entanto, estou aqui ainda, muito ativo. Tenho planos de viajar, de circular, de preencher lacunas. Deixei tanta coisa para trás – livros, discos, filmes –, que tenho sempre essa ideia de que um dia vou poder preencher todas as lacunas, tudo que eu queria ter feito e não fiz. Claro, é uma doce ilusão, mas alimento um pouco minha perspectiva de futuro com isso, de conhecer lugares que não fui ainda, enquanto a saúde me permitir. Por outro lado, não quero deixar de contribuir com a reflexão, com o debate, com a participação em torno de questões. Afinal, acumulei tudo isso não só por mim, não por mérito meu apenas. É claro que tem uma parte disso, estudei, li, tive experiências, mas não me sinto mais preparado, melhor do que ninguém. Tenho que continuar produzindo, fazendo até o último momento que puder. Então, nesse sentido, quero conciliar, pelo menos diminuir o ritmo daquilo que tenho que fazer hoje para poder usufruir melhor da minha merecida aposentadoria.