O que causa o cansaço extremo? E como lidar com a exaustão no trabalho? — Gama Revista
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Vincent Van Gogh / Musee d'Orsay

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Semana

Sentindo cansaço extremo? Você não está sozinho

É possível medir o quanto uma profissão é cansativa? Investigamos o que tem deixado trabalhadores de diferentes realidades cada vez mais exaustos

Juliana Sayuri 13 de Setembro de 2020
Vincent Van Gogh / Musee d'Orsay

Sentindo cansaço extremo? Você não está sozinho

É possível medir o quanto uma profissão é cansativa? Investigamos o que tem deixado trabalhadores de diferentes realidades cada vez mais exaustos

Juliana Sayuri 13 de Setembro de 2020

Depois de um longo dia de trabalho, quer-se mais é o sono dos justos. Vira-se para um lado e para o outro, até que finalmente o corpo é vencido pela melatonina, um hormônio produzido naturalmente pelo cérebro, que nos desacelera a ponto de nos adormecer. Na manhã seguinte, porém, às vezes você acorda alquebrado, moído como se não tivesse conseguido pregar os olhos nem por um minuto – e a ideia de levantar e começar mais um dia de trabalho é tão atrativa quanto tomar um shot de covid-19. Bem-vindo ao clube dos cansados.

Não é demais dizer que todos estamos cansados a certo ponto, por diferentes motivos. Para quem está trabalhando no modelo home office, pesa principalmente o tempo, isto é, as horas trabalhadas. Se você trabalha, é mulher e mãe, a jornada pode se estender num looping quase que infinito dentro de casa. Para quem está na rua todos os dias para literalmente garantir o arroz nosso de cada dia, como os entregadores de app, trabalho pode implicar risco diário e direitos trabalhistas na corda bamba, um esforço físico e psicológico de quem se equilibra na informalidade da “uberização“. É verdade que a tripla jornada feminina e a precariedade do trabalhadores informais já existiam antes, mas a pandemia as acirrou.

Pré-pandemia, 72% dos trabalhadores brasileiros de 25 a 65 anos enfrentavam estresse em menor ou maior grau; entre eles, 32% já eram atingidos pelo burnout, segundo levantamento da Isma-BR (International Stress Management Association) de 2018. Na pandemia, multiplicaram-se relatos de novos fenômenos de cansaço, do home office à linha de frente nos hospitais, inspirando neologismos sintomáticos como Zoom fatigue e covid-19 burnout. Mas com ou sem pandemia, é possível medir o quanto uma profissão é cansativa?

Possível é, diz o psicólogo Alberto Filgueiras, professor do Instituto de Psicologia da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). O que não quer dizer que seja simples: “Todo fenômeno psicológico, inclusive cansaço e estresse, é estudado a partir de duas perspectivas: a qualitativa, quer dizer, os relatos do que os indivíduos realmente estão sentindo; e a quantitativa, a psicometria, que mede o quanto eles estão sentindo”.

E se eles ficarem doentes? E se morrerem? Estamos todos cansados? Estamos. Mas muitos não têm sequer tempo para pensar em descansar

Isso envolve o cruzamento de três fontes: dados fisiológicos (a análise de hormônios como cortisol ou de respostas do sistema nervoso, como sudorese, sono, batimentos cardíacos), o relato do paciente e o relato de quem convive com o paciente, como família e amigos, que podem notar mudanças de comportamento (como irritabilidade, letargia e melancolia). No caso do burnout, avalia-se o quadro a partir de um questionário chamado Copenhagen Burnout Inventory. “Todas as informações são tabuladas para avaliar se a pessoa está cansada, entre aspas, como todo mundo; ou se há sinais de um quadro patológico, que é o burnout”, explica Filgueiras.

Em outras palavras, o cansaço é multifatorial, isto é, depende de diversos fatores. O que é mensurável, entretanto, não é o estresse nem o cansaço propriamente, mas indicadores de que algo está errado. Mundo afora, consultorias de coaching, recrutamento e recursos humanos costumam publicar rankings de profissões mais estressantes e cansativas, considerando critérios (variáveis) como condições e número de horas trabalhadas, níveis de responsabilidade e riscos físicos. Segundo o site de busca de empregos CareerCast, por exemplo, militares, bombeiros e pilotos estavam entre as profissões mais estressantes de 2019 nos Estados Unidos. Médicos, professores, policiais, jornalistas e bombeiros se destacaram na lista de 2013 no Brasil, de acordo com levantamento do site de empregos Adzuna.

Evitar a fadiga

Certas profissões de fato demandam mais recursos físicos e mentais. No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, a síndrome de burnout, por exemplo, é mais comum a profissionais que atuam diariamente sob pressões e responsabilidades constantes, como médicos, enfermeiros, professores, policiais e jornalistas. Entretanto, pondera Filgueiras, a questão é menos elencar “qual cansa mais” – e sim pensar como garantir o bem-estar dos profissionais a partir de suas condições específicas.

“Um exemplo simples: controladores de tráfego aéreo. É uma profissão que demanda muita, muita atenção e, por razões fisiológicas, mesmo um cérebro ultratreinado só é capaz de manter a concentração por até 2 horas consecutivas de atividade. Por isso há recomendações médicas e diretrizes legais para regulá-la. Dizer que uma profissão é altamente estressante implica buscar direitos para garantir condições de desempenhá-la”, diz. Evitar a fadiga, nesse contexto, é essencial para evitar acidentes.

Pós-pandemia, muitos brasileiros estarão estressados e exaustos, negligenciados e sentindo-se culpados por se sentirem mal

Filgueiras está coletando dados desde março para analisar casos de ansiedade e estresse na pandemia. Embora expressiva, a alta incidência (um aumento de 80%) era esperada para o pesquisador, “pois não há redes de suporte para enfrentar o que se passa nesse momento de incerteza no país; quaisquer questões de saúde mental são interpretadas, incorretamente, como ‘frescura’ ou ‘preguiça’ por empresas e gestores do poder público”. Pós-pandemia, aposta o psicólogo, muitos brasileiros estarão estressados e exaustos, negligenciados e sentindo-se culpados por se sentirem mal. “Isso vai refletir em todas as esferas da vida, inclusive na improdutividade no trabalho.”

No trabalhador, afinal, imagina-se um sujeito sempre flexível, polivalente, proativo. “A sensação de cansaço é, de fato, generalizada. O excesso se tornou a regra: dormir pouco, produzir cada vez mais, superar-se”, critica o sociólogo Elton Corbanezi, professor da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso) e pesquisador do Grupo de Pesquisa Conhecimento, Tecnologia e Mercado, da Unicamp (Universidade de Campinas).

A sensação de cansaço é, de fato, generalizada. O excesso se tornou a regra: dormir pouco, produzir cada vez mais, superar-se

Trata-se de uma busca de autorrealização destruidora. É o que o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han caracteriza como sociedade do cansaço, repleta de indivíduos esgotados e fatigados. “É uma sociedade ‘non-stop’, cujo regime de produção é 24/7, ou seja, em tempo integral. Dizia-se que, com os dispositivos de comunicação instantânea, o repouso estava fadado ao desaparecimento – já dormíamos em ‘sleep mode’, suspensos, mas sempre à disposição. A pandemia turbinou esse processo”, analisa Corbanezi.

Cansaço é subjetivo e, ao mesmo tempo, cultural, diz o sociólogo. A pandemia eleva essa condição “à enésima potência”, misturando o tempo de trabalho e o tempo livre, sobrepondo tarefas (home office, filhos, casa) principalmente sobre os ombros das mulheres, muitas vezes invisibilizadas nos bastidores e, segundo os estudos mais recentes, as mais impactadas pelo burnout.

Na linha de frente, a psicóloga Laura Camara Lima, do Instituto de Saúde e Sociedade da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) está coletando dados para analisar o estresse e o esgotamento de médicos na pandemia no país.

Insegurança quanto ao presente e ao futuro, longas jornadas, medo, tudo isso pode provocar um quadro clínico mais preocupante

Até certo ponto, estresse e cansaço são normais, lembra Lima. “Insegurança quanto ao presente e ao futuro, longas jornadas, medo, tudo isso pode provocar um quadro clínico mais preocupante. Se você acorda já cansado, muitas vezes você vai trabalhar como um robô: está lá de corpo presente, mas prestes a explodir”, define. Muitas vezes, descansar é ordem médica.

Nos anos 2000, o Brasil publicou um manual de procedimentos para serviços de saúde, com diretrizes de prevenção de doenças relacionadas ao trabalho, incluindo transtornos mentais, síndrome da fadiga crônica e burnout. Em 28 de agosto, o governo incluiu profissionais envolvidos no combate à Covid-19 na (LDRT) Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho. Em 2 de setembro, porém, o governo revogou a portaria inteiramente.

“Foi uma luta para incluir a covid-19 como doença ocupacional a fim de proteger profissionais de saúde e suas famílias e, agora, eles estão num impasse legal. E se eles ficarem doentes? E se morrerem? Estamos todos cansados? Estamos. Mas muitos não têm sequer tempo para pensar em descansar.”

Profissões, cansaço e pandemia

Pesquisadores de diversas áreas têm buscado diagnosticar os impactos da pandemia nas profissões: levantamento recente da startup médica Pebmed, por exemplo, indica que 83% dos profissionais de saúde (médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem) estão manifestando sinais de burnout no Brasil; nos hospitais públicos, 88,7% dos profissionais temem contrair Covid-19 e mais de 60% não se sentem preparados para atuar na pandemia, diz estudo da FGV (Fundação Getúlio Vargas); 73% dos profissionais de tecnologia da informação estão esgotados, segundo a consultoria Blind; 65% dos educadores foram psicologicamente abalados por estresse e exaustão, indica levantamento da Nova Escola; 62% dos trabalhadores informais relataram perda de rendimentos na pandemia, diz pesquisa Datafolha; 57% dos paulistanos estão mais cansados no home office, diz a consultoria 4CO; e estresse e ansiedade aumentaram 80% entre os entrevistados de um estudo coordenado pelo psicólogo Alberto Filgueiras, professor do Instituto de Psicologia da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), pré-publicado na revista científica britânica The Lancet.