Como (tentar) se planejar em tempos incertos — Gama Revista
Cansou de fazer planos?
Icone para abrir

4

Semana

Como (tentar) se planejar em tempos incertos

Nunca esteve tão difícil prever o futuro, vide desastres naturais, novas ondas da pandemia, crises econômicas. Como fazer planos nesse contexto? Gama foi atrás de respostas

Manuela Stelzer 20 de Fevereiro de 2022

Como (tentar) se planejar em tempos incertos

Manuela Stelzer 20 de Fevereiro de 2022

Nunca esteve tão difícil prever o futuro, vide desastres naturais, novas ondas da pandemia, crises econômicas. Como fazer planos nesse contexto? Gama foi atrás de respostas

O amanhã nunca deu tanto trabalho para futurólogos e previsores. A pandemia escancarou uma preocupação que o ser humano já nutria muito antes da chegada do vírus: a falta de controle. “Ela veio para fortalecer a discussão de que está muito difícil seguir com a perspectiva das certezas”, explica a neurocientista Ana Carolina Souza, que é sócia da Nêmesis, iniciativa que oferece assessoria e treinamento aplicando conhecimentos da neurociência organizacional.

MAIS SOBRE O ASSUNTO:
Propósito de vida ou preocupação eterna: a dor e a delícia de ter filhos
Empreendedores da pandemia
Meu maior aprendizado profissional

A mercê do destino incerto e da transmissibilidade de um vírus desconhecido, planejar uma viagem, decidir qual curso se inscrever ou organizar a compra de um imóvel parecia (e para muitos ainda parece) inútil. Isso porque a viagem corre o risco de ser cancelada a qualquer momento; o curso, de ser online e pouco produtivo depois de dois anos de pandemia e trabalho remoto; e o novo imóvel – bom, quem ainda tem condições de investir em um, recua quando pensa na imprevisibilidade da economia brasileira. Como se planejar quando é impossível fazer planos? É a pergunta de um milhão de reais. Ana Carolina Souza explica que já temos uma dificuldade natural quando o assunto é planejamento, e ainda insistimos em controlar tudo à nossa volta. Nesse contexto, quando a incerteza bate à porta, o cenário fica ainda mais complicado.

Para projetar desejos, vontades e possibilidades para um futuro tão suscetível à mudanças, Gama reuniu dicas de especialistas que podem ajudar a planejar carreira e estudos, viagem, filhos e vida financeira — e ao mesmo tempo ensinar a se desfazer dos planos rígidos demais.

É tempo de autoconhecimento

Quando reina a incerteza, tomar qualquer decisão em relação aos estudos e à carreira pode parecer um movimento arriscado. Mas a neurocientista Ana Carolina Souza explica que o fato de “tudo lá fora estar muito mexido é um convite para buscar uma percepção de segurança pautada no que é importante para cada um, independentemente dos elementos externos”. Segundo ela, é tentar trabalhar com aquilo que está sob controle – o próprio comportamento.

Em momentos em que perdemos as referências externas, abre-se espaço para pensar no que de fato se almeja. “Com essas mudanças a todo tempo e as muitas possibilidades de caminhos, vamos ter que nos conectar com o nosso desejo e com nosso alvo. E o primeiro passo, quando não sei para onde vou, é entender para onde eu gostaria de ir.”

Claro que ponderar o que se quer não significa que vamos viver exatamente o que sonhamos. “Não é isso que estamos propondo, é a criação de uma referência.” Por isso, Souza sugere analisar a realidade atual — local e dinâmica de trabalho e estudo — e subtrair o futuro que se quer alcançar. “O que eu posso fazer para chegar mais perto do que quero viver?”

O primeiro passo, quando não sei para onde vou, é entender para onde eu gostaria de ir”

Aqui mora a dica de ouro para um planejamento inteligente: em tempos turbulentos e imprevisíveis, criar um roteiro rígido será mais desafiador, como explica a neurocientista. “Deve-se ter em mente o caminho a seguir, e quais passos quero dar. Quando delimito que quero aprender uma língua, não devo me apegar a um curso ou diploma específico, vou buscar a melhor forma de aprender essa língua aqui e agora, com os recursos disponíveis.” Ou seja, é mirar no alvo, mas relativizar a maneira de chegar até ele, para permitir adaptações no meio do caminho.

Em dicas mais práticas, a especialista sugere criar marcos, de um a dez anos, e estabelecer onde se quer estar em cada um deles. Para decidir por onde começar, ela indica filtrar os objetivos por dois fatores: “Primeiro, o que eu quero mais, o que me interessa mais, que vai ser a motivação. E segundo, o que é mais fácil fazer de acordo com a minha rotina hoje, porque é isso que vai dar a sensação de movimento em direção ao objetivo”.

Seguro pra lá, seguro pra cá

Se antes da pandemia eles já eram de extrema importância para uma viagem, agora fazer um seguro é indispensável. Isso quem afirma é jornalista especializada em viagens Adriana Setti e a mochileira e publicitária Mary Teles. “Mesmo quem quer economizar, às vezes você tem acidentes, é furtado, perde passaporte, tem a mala extraviada, e o seguro vai cobrir. É uma economia burra”, diz Teles. E Setti completa: “Principalmente agora, é necessário ter um seguro que cubra covid-19 e os custos médicos”.

Viajar, por si só, já é uma experiência pouco previsível. Claro que com reservas feitas, programas e passeios agendados, é mais difícil sair do roteiro. Há quem diga, entretanto, que viajar com tudo fechado pode ser pior nesse momento. “Hoje, invertemos a lógica: é melhor planejar a viagem um mês antes, quando é possível checar em que pé está a onda da pandemia. Claro que não é todo mundo que tem essa flexibilidade”, diz Adriana Setti.

Hoje, invertemos a lógica: é melhor planejar a viagem um mês antes, quando é possível checar em que pé está a onda da pandemia

De qualquer forma, a instabilidade do momento e novas variantes do vírus já cancelaram a viagem de muita gente. “Precisamos ajustar as expectativas: marcar uma viagem sabendo que ela pode não rolar, e não ficar mais tão chateado com isso. E tem que se ajudar: se for viajar e vai precisar apresentar um teste, faça uma quarentena dentro do possível nos dias antes.”

Na hora de escolher para onde ir, alguns destinos podem ser mais interessantes do que outros. Os mais clichês e conhecidos costumam ter mais relatos e reviews de outros viajantes, como lembra Mary Teles. “É muito mais fácil encontrar detalhes de transporte, estadia, imigração, documentação, segurança nesses casos.” Os destinos nacionais também são boas pedidas a quem está mais inseguro com a imprevisibilidade. “Elimina logo de cara o problema das fronteiras”, pondera Setti. “Também os lugares para ir de carro, já que o aluguel de veículos é muito mais flexível.”

Outra boa prática para a incerteza do momento é viajar leve. “Despachar mala é só mais uma coisa para se preocupar, e um valor extra em dinheiro também. Viajar com uma mochila ou mala de cabine dá muito mais flexibilidade para ajustar o roteiro”, conta Teles.

Reserva de emergência pra ontem

“Muita gente percebeu a importância de saber como cuidar das finanças durante a pandemia”, conta Júlia Abi-Sâmara, fundadora da As Investidoras, perfil dedicado a ensinar mulheres sobre investimentos. “A reserva de emergência é essencial em momentos de imprevisibilidade, e também em momentos que parece estar tudo bem.” Segundo ela, o primeiro passo para pensar em fazer planos que envolvem dinheiro é separar uma quantia só para emergências – e investí-lo num lugar seguro, com alta liquidez, para poder ser resgatado a qualquer momento.

Durante essa organização, já é hora de refletir sobre onde e como investir, uma vez que os investimentos podem te proteger do cenário incerto e cheio de mudanças, como explica Abi-Sâmara. “Se a inflação está muito alta, encontramos opções que nos protegem dela. Ou quando o dólar está aumentando, há opções de investimentos do exterior, o que nos protege da nossa moeda desvalorizada.” Acima de tudo, ela fala em alocar o dinheiro de forma estratégica, por isso, estudar o assunto é quase uma lei.

A reserva de emergência é essencial em momentos de imprevisibilidade, e também em momentos que parece estar tudo bem

Por mais que não seja possível controlar as ações da bolsa, subidas e descidas do dólar, dá para fazer planos que envolvam dinheiro – com bastante organização. Se há um objetivo, seja ele uma viagem, uma festa ou a chegada de um filho, Julia Abi-Sâmara diz que é preciso separar as informações básicas: a quantia necessária para alcançar aquele objetivo, quanto vai ser investido por mês e o prazo para realizá-lo. “Se for um plano mais a longo prazo, podemos investir em renda variável ou outras opções mais arriscadas, e ao se aproximar do prazo, transferir o dinheiro para um investimento mais conservador, com menos risco de perda.” Já em planos a curto prazo, é melhor manter-se em opções mais seguras, diz ela. Em qualquer situação, entretanto, a organização financeira é o caminho mais recomendado: “Nada de ruim pode acontecer se você estiver preparado”.

Filhos: controlar o incontrolável

A educadora parental Lua Barros diz que a parentalidade vai além de planilhas ou qualquer coisa que possamos tocar. “O planejamento da chegada de um filho precisa ter como premissa a flexibilidade.” Porém, quando há recomendação médica para adiar os planos de gravidez por uma questão macro do momento, é preciso esperar. “É bom observar esses movimentos do mundo, para pensar o quanto damos conta ou não de uma criança.”

Quanto mais dialogamos com a falta de controle, mais fácil fica abraçar o caos que é a chegada do filho

No lugar do quarto ou do enxoval do bebê, Barros sugere planejar e pensar sobre as relações que rodeiam o filho prestes a chegar. “Com quem posso contar? Tenho ou não tenho rede de apoio? São coisas muito mais relacionadas ao entorno do que ao bebê em si, porque ele só precisa de cuidadores disponíveis emocionalmente, e nós adultos nos disponibilizamos quando sentimos que estamos sendo cuidados também.” A verdade é que a parentalidade é quase toda incontrolável e inconstante. “E quanto mais dialogamos com essa falta de controle, mais fácil fica abraçar o caos que é a chegada do filho.”

O planejamento, nesse caso, é bem diferente das finanças, que tem um caráter mais obrigatório: deve ser feito quando vai prover segurança e tranquilidade para os cuidadores, mas não pode prender a família em uma rotina que, por exemplo, não faça sentido. “Nos três primeiros meses, o que rege essa dança é o rock n’ roll, não tem horário, não tem dia nem noite. O bebê está chegando ao mundo, e você precisa conhecê-lo para entender o que serve para você e para ele”, explica a educadora. “A palavra planejamento talvez tenha que ficar num segundo plano. É tranquilizador e importante, mas não é estruturante.”