Uma turma de cineastas políticos — Gama Revista

Uma turma

Cinema de urgência

Conheça os jovens cineastas que fazem de seus filmes ferramentas de luta política. Em comum, estão engajados com temáticas sociais de violência e injustiça

Laura Capelhuchnik 17 de Julho de 2020

O audiovisual brasileiro não se exime das desigualdades que afetam o país — há desequilíbrio no acesso, pela má distribuição das salas de cinema, assim como é parca a representatividade de temas e pessoas, sobretudo de mulheres negras, nas telas e atrás das câmeras.

Mas faz tempo que há muita gente trabalhando na construção de um cenário diferente, mais democrático: ao trocarem as câmeras de mão, consequentemente, mudam os ângulos sob os quais são narradas as histórias no Brasil. São jovens cineastas que usam o cinema, uma arte cuja produção é tradicionalmente circunscrita a uma parcela pequena e privilegiada da população, como ferramenta de luta política.

A seguir, Gama mostra sete dessas múltiplas vozes que transitam entre o documentário e as obras ficção para retratar em filmes perspectivas habitualmente soterradas. Alguns destes profissionais fazem nascer o cinema de dentro da militância; outros reforçaram sua atuação política depois da experiência de fazer cinema. Alguns lutam para ver estampadas nas telas as discussões mais atrozes, das quais constantemente fugimos; outros projetam e ensaiam em seus filmes as mudanças a que queremos assistir. Em comum, todos estão engajados com temáticas sociais urgentes, ligadas ao debate sobre moradia nas cidades, violência policial, abuso e exploração sexual infantil, questões de gênero, raça e classe.

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    © Arquivo pessoal

    Chico Santos e Rafael Mellim, Coletivo Bodoque

    Um cinema para se imaginar (e ensaiar) as mudanças desejadas

    Os diretores Chico Santos e Rafael Mellim se conheceram em São Paulo, no curso de teatro. Interessados em movimentos sociais, eles sempre quiseram inserir as questões relativas à política na dramaturgia. Encontraram no cinema um jeito de fazê-las chegar mais longe. “Muito rapidamente passamos a nos interessar pelo audiovisual pela capacidade de alcance, que nos parecia bem maior que a do teatro. Caímos de cabeça na produção filmes porque acreditávamos que seria um bom projeto aliado à luta dos oprimidos”, afirma Chico. Os dois começaram a dar aula de audiovisual como educadores populares, casaram-se e criaram o Coletivo Bodoque, uma produtora de cinema engajado em temáticas sociais, “meio que tudo ao mesmo tempo”.

    Um dos trabalhos mais celebrados da dupla é “Estamos Todos Aqui“, de 2017, um curta-metragem de ficção com inserções documentais rodado na Favela da Prainha, no Guarujá. A obra, que alia o debate sobre propriedade privada à discussão identitária, foi premiada em festivais brasileiros e internacionais, como o Queer Lisboa, em Portugal, o Festival de Cine Latinoamericana de La Plata, na Argentina, e a Mostra de Tiradentes (MG).

    Chico Santos cresceu no complexo de periferias da região onde está a Prainha. O processo de criação do filme ganhou forma ao sabor dos encontros com os membros da equipe e os moradores locais, alguns dos quais já amigos da dupla. O enredo parte de histórias reais de despejos e violências praticadas pelo Estado, mas se centra na trajetória de Rosa, uma mulher trans que é expulsa de casa e precisa construir o próprio barraco em um local devastado pela especulação.

    A associação das duas temáticas está relacionada a como os dois veem o tratamento dado pelo cinema industrial à discussão das opressões, “de forma isolada, sem fundo histórico, o que pode nos levar a uma leitura que não corresponde com a realidade”, diz Rafael.

    Também já não os mobiliza a representação da pobreza como paisagem melancólica e imutável, e sim a maneira como um personagem marginalizado pode ser protagonista da própria libertação. No filme, Rosa é heroína de um levante contra a violência e o poder do Estado. Não é a ingenuidade de sempre representar os oprimidos vencendo, mas conduzir o espectador para uma percepção menos fatalista e mais ativa sobre o que se vê. “A gente tem a necessidade de ver filmes que incendeiem de coragem nossos corações. Estamos tentando fazer filmes que a gente gosta de ver”, diz Chico.

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    © Arquivo pessoal

    Aiano Bemfica

    ‘A imagem é uma coisa muito maior do que o cinema, e a luta é uma coisa muito maior do que a imagem’

    Foi a partir do trabalho como midiativista no turbulento junho de 2013 que o diretor mineiro Aiano Bemfica se aproximou dos movimentos de luta por moradia em Belo Horizonte. No mesmo ano, participou da direção de uma campanha bem-sucedida por uma creche comunitária dentro de uma ocupação organizada pelo MLB (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas) e, a partir de então, os laços entre cinema e ativismo foram se estreitando. “A produção de imagem está inserida em um processo complexo de comunicação, de luta, como se fosse um braço tático do movimento”, diz Aiano, que cursou cinema em Buenos Aires e antropologia na UFMG.

    O mineiro é codiretor de dois curta-metragens feitos no interior das ocupações. Entre eles, “Conte Isso Àqueles que Dizem que Fomos Derrotados“, de 2018, premiado no Festival de Brasília. O filme, feito junto com Camila Bastos, Cris Araujo e Pedro Maia de Brito, foi esculpido a partir de fragmentos de quatro anos de filmagens de ações do MLB em um processo de renovação de forças depois de violentos episódios de despejo em 2016 e 2017.

    Embora os filmes nasçam da militância, isso não quer dizer que não haja preocupação cinematográfica. “A gente quer discutir linguagem, mas fazer isso primordialmente pensando na relação com as lutas que estão sendo traçadas”, afirma. Segundo ele, o cinema está vinculado à constituição de memória, à apresentação de uma narrativa contra-hegemônica e ao uso da própria câmera como instrumento de defesa, já que sua presença inibe – e, quando não, registra e contesta – a violência perpetrada contra os movimentos sociais.

    Aiano agora finaliza um longa-metragem, “Entre Nós Talvez Estejam Multidões”, dirigido em parceria com Pedro Maia de Brito. Previsto para o segundo semestre, o filme retrata  uma ocupação em seu processo de permanente construção, na época das eleições de 2018. Também prepara uma videoinstalação para compor o pavilhão brasileiro da próxima Bienal de Arquitetura de Veneza,  em parceria com os diretores Edinho Vieira e Cris Araujo: “Caminhará nas Avenidas, Entrará nas Casas, Abolirá os Senhores”, em menção à obra do conterrâneo Carlos Drummond de Andrade.

    Na quarentena, junto ao MLB, o diretor inaugurou a Lona – Mostra Cinemas e Territórios, uma plataforma que reúne a produção cinematográfica feita em conjunto com os movimentos.

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    © Arquivo pessoal

    Camila de Moraes

    Reconstruir a memória, furar o sistema, abrir os espaços

    Nos anos 1980, o operário negro Júlio Cesar de Melo Pinto foi confundido com um assaltante e executado em Porto Alegre por policiais militares. O episódio, que ficou conhecido na capital gaúcha como “o caso do homem errado” foi documentado por um repórter fotográfico do Jornal Zero Hora, mobilizou a opinião pública à época e foi a julgamento. Cerca de 30 anos depois, a diretora Camila de Moraes resgatou a história em seu primeiro longa documental, “O Caso do Homem Errado“, que fala sobre o genocídio da juventude negra e propõe uma reflexão: se fosse de fato um criminoso, sua morte seria admissível?

    Júlio Cesar era muito próximo à família de Camila. Filha de um jornalista e uma atriz, ela cresceu dentro de um núcleo engajado na militância do movimento negro  e na cena cultural do Rio Grande do Sul. Desde a faculdade abraçou a ideia de discutir a violência policial e o assassinato da população negra no Brasil. O projeto de contar a história de Júlio começou em uma disciplina de jornalismo investigativo, durante o curso de comunicação social, em 2008. À época, acompanhada de uma filmadora, Camila decidiu transformar a investigação em documentário.

    O processo de viabilização do filme durou cerca de oito anos, em um percurso independente e com muitas negativas. Outra batalha foi a luta para fazer o filme entrar em circuito comercial — algo que só uma diretora negra brasileira havia conseguido antes dela, Adélia Sampaio, com “Amor Maldito”, na década de 1980. O longa foi exibido em salas de diversos estados e entrou para a lista dos pré-selecionados para concorrer ao prêmio de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar de 2019.

    Gaúcha radicada em Salvador, Camila atualmente cursa o bacharelado interdisciplinar em artes da Universidade Federal da Bahia, com ênfase em audiovisual, e prepara a série “Nós Somos Pares”, que surge para colaborar com o discurso antirracista na televisão e no cinema. Trata das histórias de seis protagonistas negras, suas vidas e convicções, fugindo das representações estereotipadas em tela. “Essa é nossa arte militante. É abrir espaços”, diz. “A gente tem debatido bastante mas precisa partir para ação. Essa mudança está muito lenta, e não temos tempo para isso: a cada 23 minutos nós somos assassinados”.

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    © Arquivo pessoal

    Natasha Neri

    E o filme que incandesceu sua trajetória de militante

    “Sigo tentando desmistificar o audiovisual — tem muito de glamour do cinema, né? Mas cinema se constrói no dia a dia, a partir das relações que você trava com as pessoas e sob a perspectiva da luta”, afirma Natasha Neri, diretora do documentário “Auto de Resistência“, sobre crimes cometidos pela polícia contra civis no Rio de Janeiro.

    Mestre em sociologia e antropologia pela UFRJ, é coautora do livro “Quando a Polícia Mata: Homicídios por Autos de Resistência no
    Rio de Janeiro (2001-2011)” (Booklink, 2013) fruto de sua pesquisa nas áreas de justiça criminal e direitos humanos. Foram a vontade de expandir a discussão acadêmica e a angústia de acompanhar o agravamento da violência perpetrada pelo Estado que a levaram ao cinema. Juntou-se ao diretor de fotografia Lula Carvalho para fazer o documentário, lançado em 2018, que venceu o Festival É Tudo Verdade do mesmo ano e foi indicado para representar o Brasil no Oscar.

    “Auto de Resistência” conta a história de mães de vítimas da violência policial que lutam para que os casos de seus filhos não caiam no esquecimento. A obra foi construída coletivamente com mães ligadas à Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência e ao Fórum Social de Manguinhos, no Rio de Janeiro. “A gente queria poder mostrar a forma como as instituições funcionam em uma engrenagem de legitimação de mortes, de desumanização das vidas negras e pobres por conta do racismo estrutural que perpassa a justiça. E a luta das mães para virar essas engrenagens”, conta Natasha.

    Na época da divulgação do trailer nas redes sociais, a diretora foi vítima de ataques orquestrados em repúdio ao filme. “Mas como diz a [deputada estadual do PSOL-RJ] Mônica Francisco, nos tiraram tanto que perdemos o medo. Se essas mulheres que estão no filme não tem medo da luta, estão de pé até agora, eu, branca, cineasta e pesquisadora não faço mais do que a minha obrigação de seguir nessa caminhada ao lado delas.”

    Hoje, Natasha é pesquisadora do ISER, integrante da Frente Estadual pelo Desencarceramento no Rio e continua produzindo conteúdo audiovisual para ajudar nas mobilizações de movimentos contra a violência. Agora, ela prepara um vídeo em recordação aos 30 anos da Chacina de Acari e ao movimento pioneiro de mães. “É assim que eu sigo vivendo, a luta a partir do cinema. E principalmente com as mães.”

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    © Camila Izidio e Carol Rocha

    Karoline Maia

    Tensionar o debate, constituir memória

    Em julho de 2020, a cineasta Karoline Maia concluiu com sucesso a campanha de arrecadação para financiar seu primeiro longa-metragem de forma independente, “Aqui Não Entra Luz”. Em fase de montagem, o documentário é um percurso por cinco estados brasileiros com a missão de investigar a relação das senzalas dos casarões erguidos no período colonial e os cômodos reservados às empregadas domésticas nos apartamentos brasileiros hoje.

    Nascida e criada no Jardim Helena, periferia de São Paulo, Karoline é filha de uma trabalhadora doméstica, e combina, no filme narrado em primeira pessoa, a história da própria família em imagens de arquivo com depoimentos de outras seis mulheres que moraram em quartos de empregada.

    O filme partiu de um processo de elaboração de um episódio de violência sofrido pela cineasta e do enfrentamento ao racismo. “O trabalho doméstico está diretamente ligado ao racismo e à escravidão no Brasil. A gente sabe como foi o processo pós-abolição, que não deu ferramentas para que a população negra pudesse fazer uma mudança estrutural no jeito de se trabalhar e de ser vista socialmente”, diz.

    A equipe de “Aqui Não Entra Luz” é majoritariamente composta por mulheres negras, assim como a produtora Pujança, que Karol mantém com  Carol Rocha e Camila Izidio. Recentemente, elas lançaram pela produtora a segunda temporada da websérie documental “Nossa História Invisível”, que perfila mulheres negras.

    “Meu trabalho sempre foi atravessado por questões de raça, gênero e território”, explica, contando que produzir conteúdo engajado é um dos nortes da produtora, mas que ela não se resume a isso. “Enquanto profissionais estamos capacitadas a produzir conteúdo e cinema sobre qualquer tema.”

    O cinema começa a ser político, segundo Karol, quando no set de filmagem se vê rostos que não estão lá costumeiramente. “Isso já é incrível porque essas pessoas tocarão em assuntos pouco escutados e pouco investigados.”

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    © Arquivo pessoal

    Adriana Yañez

    Como fazer um filme que mostra o pior de nós mesmos

    “Acho que câmera do documentário já me colocou no meio de muitos furacões, vivi momentos de muita beleza e também de uma tristeza profunda”, conta Adriana Yañez, que lançou em 2020 “Um Crime entre Nós“, documentário que investiga o abuso e a exploração sexual de crianças no Brasil. A diretora foi convidada a participar do projeto, realizado em parceria com a Maria Farinha Filmes. E escreveu na Gama sobre a responsabilidade de assumir a direção do trabalho, que ela chama de “o filme que ninguém quer ver”. “Pensei que ia ser muito duro, e foi muito duro. Mudou para sempre meu olhar para muita coisa, muitos véus apaziguadores que existem no mundo caíram, e acho que esse é um processo muito importante”, conta.

    É o primeiro longa-metragem da cineasta — e provavelmente o seu trabalho mais político  –, embora o olhar acurado para temas vinculados aos direitos humanos tenha sempre permeado a sua trajetória profissional, mais ligada a atravessamentos políticos do cotidiano, como no filme “Vila Fiat Lux”, em que a diretora fala sobre a infância em uma antiga vila de operários.

    A preparação para o filme envolveu tempo de estudo e conversas com 50 pessoas ligadas à rede de enfrentamento da exploração sexual infantil direta ou indiretamente, “Muita escuta e muita responsabilidade”, conta. Além de entrevistas com pessoas ligadas ao combate, o longa reúne histórias de vítimas de abuso e exploração, e o consequente desafio de narrar esses episódios. “Ficamos pensando em que linguagem seria essa, como contar essas histórias sem nenhum risco, sem expor ou revitimizar as mulheres. Mas é fundamental contar. Eu absolutamente acredito na potência do universo particular de cada um para narrar histórias do coletivo.”

    Para produzir neste momento, Adriana busca frestas, novos espaços, novas formas de fazer cinema — e política. Fala das fricções de futuro, de reconhecer privilégios e pensar em pontes para novas travessias. “É preciso falar sobre o pior de nós, mas lançar luz aos movimentos e trabalhos potentes que produzem outras histórias e nascem de outros lugares – não os lugares que sempre dominaram as narrativas e toda nossa subjetividade”, afirma. “O audiovisual, sem dúvida, tem essa potência. Não é à toa que, sob o regime de um governo autoritário, estejamos vivendo o desmonte da cultura e a ameaça de extinção da Cinemateca Brasileira com toda a história guardada ali.”

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