A vez das livreiras — Gama Revista
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A vez das livreiras

Ao driblar sucessivas crises e a hegemonia das gestões masculinas, mulheres tomam a frente de livrarias e editoras e mudam perfil do mercado

Mariana Payno 28 de Maio de 2021

Mulheres sempre foram maioria nos bastidores do mundo dos livros — é o que diz Maria Emília Bender, que circula pelo mercado há 40 anos. “Mas elas ficavam embaixo, o cara na ponta e um rebanho feminino trabalhando loucamente”, diz. O cenário, no entanto, vem mudando: na última década — a mesma que viu crescer as publicações de autoria feminina e surgir movimentos como o Leia Mulheres e o Mulherio das Letras —, o “rebanho” também tomou as rédeas de livrarias e editoras, abrindo seus próprios negócios em mais uma área historicamente comandada por homens.

Em um nicho que enfrenta sucessivas crises, muitas das gestões femininas passaram a questionar formas de atuação já dadas como certas. “O mercado é ‘assim’: será que é assim, que precisa ser assim? Às vezes temos achado que não”, avalia Fernanda Diamant, ex-curadora da Flip, editora da revista Quatro Cinco Um e idealizadora da editora Fósforo e da livraria Megafauna (veja mais abaixo). Para ela, ninguém está “inventando a roda”, mas há entre as mulheres à frente do mercado livreiro um movimento muito colaborativo de parcerias. “Estamos jogando juntas.”

Entre esses novos negócios há editoras e livrarias, cada uma com uma visão própria, como a Gato Sem Rabo, da catarinense Johanna Stein, que acaba de ser inaugurada na região central de São Paulo, com a missão de tentar “preencher uma lacuna histórica”, como ela disse a Gama.

A seguir, Gama apresenta os projetos encabeçados por Fernanda, por Maria Emília e por outras mulheres que vivem entre os livros.

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    Para tudo tem um livro

    Amigas de infância e com experiência no mercado, Ciça Pinheiro e Ana Paula Rocha criaram a livraria virtual Dois Pontos

    Depois de décadas de amizade, o universo conspirou a favor de unir Ciça Pinheiro e Ana Paula Rocha também nos negócios. Ciça, que foi diretora de comunicação da editora Todavia e diretora de criação da revista Trip e da Gama, carregava a ideia há algum tempo e pescou Ana em 2020, quando a amiga deixou a Zahar, onde trabalhava há 15 anos. Com expertises diferentes, mas amplas, no mercado — Ciça é criação e Ana, operações —, a dupla acaba de lançar a Dois Pontos, livraria virtual e focada em oferecer aos leitores uma boa curadoria.

    O projeto começou a ser imaginado por Ciça anos atrás, quando o mercado passou a repensar os modelos de livraria com a quebra das duas grandes redes brasileiras, Cultura e Saraiva. “Havia um lugar a ser explorado no mundo digital, aquele do passeio pela loja física”, explica. Para reproduzir digitalmente esse vagar pelas estantes, a Dois Pontos aposta em conteúdos que funcionam como as dicas amigáveis de um livreiro. “A ideia é despertar a curiosidade: ‘descubra sua próxima leitura’”, diz Ana.

    O conceito é explorado ainda mais nos dois clubes de assinatura da livraria, um de ficção e um de não-ficção: os títulos selecionados vêm acompanhados por um guia que mais parece uma conversa. “Não basta colocarmos um livro legal, queremos contar por que esse livro é legal”, avalia Ciça.

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    Curadoria ancestral

    Idealizada pela bibliotecária Ketty Valencio, a livraria Africanidades reúne e vende títulos de autoras e autores negros

    Formada em biblioteconomia, a paulistana Ketty Valencio sabe bem que montar um catálogo é sempre uma escolha política. “O bibliotecário é o mediador da informação: consegue esconder ou mostrar o que quer”, explica. Para ela, esse processo passa necessariamente pela questão racial — e foi com isso em mente que Ketty abriu em 2013 a livraria Africanidades, focada em autoras e autores negros. “É uma ideia que tem a ver com não encontrar livros que me representassem”, diz.

    Ela vê o projeto — que começou como e-commerce e depois ganhou espaço físico para encontros e eventos culturais, agora fechado pela pandemia — como resultado de séculos de resistência do movimento e da literatura negros. “Não é um trabalho inovador: desde o século 18 há pessoas negras falando e produzindo, eu só peguei o bastão.” Em um momento em que o movimento antirracista ganha mais visibilidade e atinge também a população branca, Ketty tenta trazer para a superfície uma literatura contemporânea mais underground. “Minha curadoria é para favorecer narrativas e campos desconhecidos.”

    Entre as autoras vendidas na Africanidades e no seu clube de assinaturas, que conta com as curadoras parceiras Odara Dèlé, Kika Sena e Lu Ain-Zaila, estão Carmen Faustino, Marli Aguiar e a poeta do slam Nega Fya.

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    Chama na escuridão

    Rita Mattar e Fernanda Diamant estão à frente da Fósforo, editora que chega com catálogo amplo para pensar a contemporaneidade

    As editoras Rita Mattar e Fernanda Dimant estavam prestes a embarcar para a Feira do Livro de Londres, em março do ano passado, quando foram surpreendidas pela pandemia. Um tanto quanto frustrante, o acontecimento acabou forçando a dupla a desacelerar o lançamento da Fósforo, editora desenhada a todo vapor desde 2019 pelas duas e por Luís Francisco Carvalho Filho. “A gente parou para respirar, fomos obrigadas a planejar com calma”, conta Fernanda.

    Após observar por um ano os novos rumos de um mercado com o qual elas já estavam acostumadas — Fernanda era a então curadora da Flip e Rita tinha passagens pela Companhia das Letras e pelo Grupo Folha —, vislumbraram os caminhos a longo prazo. “Pensamos na equipe, no clima, na relação com outras editoras, mas principalmente pensamos muito sobre que tipo de livro a gente quer fazer”, explica Fernanda.

    Agora posta no mundo, a Fósforo tem 24 títulos planejados para 2021. O catálogo é amplo e multidisciplinar, mas pensado de forma consistente para o momento atual. “É uma seleção que reflete nossos tempos, nossos gostos, o que está nos ocupando”, define Rita. Nessa toada, já saíram do forno livros como o consagrado “O Lugar”, da francesa Annie Ernaux; “Psiconautas”, de Marcelo Leite, sobre a ciência psicodélica no Brasil; e a ficção a la black mirror “Kentukis”, da argentina Samanta Schweblin.

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    Os livros na cidade

    Comandada por mulheres, a livraria Megafauna traz para o térreo do Copan uma curadoria focada nas humanidades e na divulgação científica

    Um projeto sonhado para a vida sem pandemia: um ponto de encontro com uma rica programação em um dos cartões postais da arquitetura paulistana, acompanhado pelo cardápio da chef Bel Coelho. “Ficava até me imaginando como uma livreira personagem de romance nesse cenário”, brinca a editora Maria Emília Bender. Com a crise do coronavírus, as aglomerações ficaram para depois, mas a Megafauna abriu as portas no final de 2020, no térreo do edifício Copan.

    Embora tenha dois sócios, a empreitada é liderada majoritariamente por mulheres. Direto da cúpula da Flip, Fernanda Diamant e Irene de Hollanda codirigem a casa, que conta ainda com as expertises de Maria Emília, da arquiteta Anna Ferrari e da curadora Rita Palmeira. Com essa turma de peso, o espaço foi pensado como um lugar de expansão do pensamento e do diálogo — apoiado, para isso, em uma robusta curadoria de títulos e eventos. “O processo de escolha dos livros passou pela análise do catálogo de mais de cem editoras, pensando na diversidade como pauta importante”, explica Irene. Literatura, arte, arquitetura e divulgação científica habitam as estantes da Megafauna.

    Já os eventos presenciais viraram online: além das lives, a livraria produziu o podcast Vinte Mil Léguas, em parceria com a revista Quatro Cinco Um, e lança em breve o próprio site.

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    Outras narrativas

    A escritora paraibana Débora Gil Pantaleão criou a editora Escaleras para publicar mulheres e pessoas LGBTQI+

    Negra, bissexual e nordestina, a doutoranda em Letras e escritora Débora Gil Pantaleão não se encaixa no perfil hegemônico dos autores mais publicados no Brasil: homens, heterossexuais, brancos e da região sudeste. Depois do primeiro contato com o universo dos cursos de escrita criativa e das editoras independentes em 2016, ela pensou em criar um selo para se autopublicar. “Mas só para mim não fazia sentido: queria dar espaço para outras novas autoras”, conta. No final de 2017, junto ao coletivo Mulherio das Letras, ela lançou a Escaleras.

    A casa nasceu para publicar sobretudo mulheres, mas Débora também abriu os caminhos para homens negros e LGBTQI+. “Pretendo fazer parte das editoras que estão dando espaço para novas narrativas, novos autores, novas personagens — e novo não em um sentido de novidade, mas porque não existia esse espaço antes”, diz. Entre os títulos recém-publicados pela editora, estão “No Horizonte, A Terra”, com contos da potiguar Danielle Souza; “Desmistificando o Feminismo e a Mulher Inventada pelo Machismo”, que traz o olhar da jurista Carla Fernandes sobre a questão; e “Brutos e Insensíveis”, retratos da violência urbana por Thiago Oliveira.

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    Os frutos do quintal

    Daniela Amendola plantou a ideia e Roberta Paixão regou: assim nasceu a livraria Mandarina

    Foi em uma rede social, talvez meio de brincadeira, que a publicitária Daniela Amendola lançou a ideia: “Quero abrir uma livraria” — e a jornalista Roberta Paixão levou a sério. As duas já se conheciam dos eventos em um espaço criado por Daniela em 2013 para abrigar cursos e debates, o Quintal Amendola, e ficaram mais próximas durante uma pós-graduação em comum. A semente plantada online espalhou ramos. “Fomos conversar com editoras, livreiros, autores, para entender onde a gente poderia se encaixar”, conta Roberta. Em solo fértil, nasceu em 2019 a livraria Mandarina, em uma casinha acolhedora na zona oeste de São Paulo.

    Neta de João Amendola, pioneiro do mercado livreiro em Campinas, Daniela guardava o legado. Como o fruto nunca cai longe do pé, ela trouxe para a Mandarina um modelo que já seguia em seu quintal: além da venda de livros (focada em humanidades, literatura e infanto-juvenis de editoras independentes), transformou o espaço, junto com Roberta, em um ambiente de “encontros frutíferos”. “Um lugar por onde perpassa a palavra, o saber”, diz.

    Antes da pandemia, a Mandarina sediava conversas, noites de autógrafos e um clube de leitura — tudo, depois, migrou para o online. Afinal, mesmo à distância, a dupla quis manter a vocação do negócio: “Um refúgio em meio aos livros”, define Roberta.

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