Test-drive: acordar às 5h para correr — Gama Revista
O quê: Acordar cedo e correr todo dia por duas semanas
Quem: Antonio Mammi
19 de Janeiro de 2021

Quando a Gama me pediu uma sugestão para este test-drive, as editoras meio que hesitaram em aceitar minha proposta. À primeira vista, acordar às 5h20 durante duas semanas para correr no Minhocão não parecia tarefa tão desafiadora se a pessoa costuma pular da cama às 6h para trabalhar.

Mas eu sabia que esses 40 minutos me sairiam caro. Bastava lembrar das fantasias que tinha quase todos os dias quando criança, depois de ser transferido para o turno da manhã na escola – fantasias vívidas sobretudo no horário de verão. Ao ouvir o toque do despertador, delirava com a possibilidade de trocar uma falange do dedinho por uma hora a mais de sono.

Quem me acordaria era o apresentador do jornal das 5h, com voz soando a barba por fazer e café frio e viscoso no copo plástico

Sem ter que recuar tanto, era só pensar no impacto que me causam as vozes da estação de rádio que escolho para me despertar. No meu horário usual, acordo com as primeiras chamadas do jornal das 6h, no timbre límpido de um âncora cuja voz associo a banho tomado e canecas fumegantes. No horário de corrida, quem me acordaria era o apresentador do jornal das 5h, com voz soando a barba por fazer e café frio e viscoso no copo plástico.

De qualquer modo, eu tinha algum interesse no desafio. Sou daqueles que, à medida que me incumbo de mais tarefas no dia a dia, mais angustiado me sinto justamente por aquilo que estou deixando de lado. No meu caso, atividade física. Me inscrevi numa academia para frequentar depois do trabalho, no final da tarde, horário em que o Minhocão está fechado para pedestres. Não era para mim.

Na hora em que o Minhocão fecha para os carros, às 20h, já virei pedra. Para não cair na armadilha do sono bifásico, chegava em casa e ia direto para a louça. Punha o rádio, descia um goró e me dedicava a alguma atividade que me deixasse acordado até umas 22h, para então tentar dormir. Invariavelmente, derretia na tela do celular, perdendo horas em vídeos de adolescentes filmando cada minuto de suas vidas ou monólogos de polemistas de extrema direita.

Nessa toada, não demorou, é claro, para que o sono bifásico dominasse minha rotina. No começo, funcionou: dormia às 17h, acordava às 20h; produzia algo, bebia alguma coisinha; dormia à 1h e então acordava relativamente bem às 6h. É evidente que não demorou para que essa rotina falhasse miseravelmente. Dormia às 17h, acordava à meia-noite. Agoniado, passava a madrugada em branco e chegava moído ao trabalho no dia seguinte. Em algum dia em meio a essas semanas amorfas, encasquetei que tinha que correr alguma manhã no Minhocão, que fica a pouco mais de cinco minutos a pé de casa.

Na véspera, separei uma muda de roupa, cueca inclusive, e deixei ao pé da cama. Acordei no dia seguinte ao som escalonado de Aerosmith ou Scorpions, não sei, algo que imagino que pais americanos mais jovens que os meus deviam ouvir para transar nos anos 80.

Me troquei, corri. A melhor luz do dia sobre o Banespão, o marcador do trecho que encurva a partir da São João. Mais gente passeando com o cachorro do que gente correndo. A cidade acordando, a bomba de endorfina. Ao longo do dia, a produtividade lá em cima, pensamentos em torrente. O vinho vitorioso do fim da tarde, o sono natural às 22h, animado por um sonho vívido, cheio de detalhes e travessias.

Depois desse dia, nunca mais consegui acordar às 5h20. A obrigação de escrever este texto poderia me disciplinar à rotina que exigia aquele dia de que me lembrava com tanto carinho. E também me ajudaria a matar a angústia: se não conseguisse agora, que parasse de me penitenciar por não ter tentado.

Fui relativamente bem no primeiro dia do test-drive, uma segunda-feira chuvosa e nada convidativa. Completei os 5 km em 40 minutos, bem acima dos 30 minutos em que percorria o trajeto quando corria com alguma regularidade aos finais de semana. Troquei palavras de incentivo com um homem corpulento, que vinha em sentido contrário, provavelmente neófito na corrida pelo entusiasmo com que me cumprimentou, como se estivéssemos atravessando um deserto.

Para celebrar, derrubei três cascos de cerveja à noite. Não preciso dizer que a ideia foi péssima

Para celebrar, derrubei três cascos de cerveja à noite. Não preciso dizer que a ideia foi péssima. Acordei de ressaca na terça-feira, e o clima, de novo, não ajudou. Assim como na véspera, a chuva da madrugada só estava começando a sossegar. Os moradores de rua dormiam nas calçadas sob guarda-chuvas recostados a 45° nas paredes.

Aguentei uma perna do trajeto. No retorno, estava conseguindo segurar a barra, mas resolvi dar uma parada. Tinha a esperança sabidamente (mas não instintivamente) vã de voltar a correr depois. Nessas condições, como ensinou um Norman Mailer ressacado tentando acompanhar Muhammad Ali num jogging, o corredor deve se comportar como um caminhão na subida, devagar e sempre, sem frear.

O ensinamento literário não foi disciplinador. Mandei ver um hambúrguer na terça à noite, para me recompensar por ter corrido em péssimas condições naquela manhã. Com o estômago feito betoneira e o gosto de maçaneta na boca, o vômito começou a coçar o começo da língua no começo do trajeto de quarta.

A muito custo, o trote engrenou. Depois de dois dias encobertos, a manhã estava linda. A luz das 6h faz com que uma manhã de verão pareça outonal, e os sinuosos prédios do entorno, banhados a ouro, davam uma beleza estranha à paisagem desordenada, brindada com a Serra da Cantareira na altura da avenida Pacaembu.

Sempre vou ao Minhocão só com a roupa do corpo. Ou seja, não corro ouvindo música. Nesse terceiro dia, ao fim do trajeto, na subida que leva de volta à praça Roosevelt, minha cabeça já fluía aos borbotões. Minha memória se expandia a tal ponto que conseguia enxergar a costeleta falsa, pintada a carvão, do ajudante do vendedor de coco que costumava ficar no topo da subida aos finais de semana.

Consegui concatenar todas as boas ideias esquecidas por semanas, meses, anos, em geral afugentadas por estímulos vindos de uma tela

O ritmo físico e mental na quinta e na sexta foi o melhor possível. Consegui concatenar todas as boas ideias esquecidas por semanas, meses, anos, em geral afugentadas por estímulos vindos de uma tela. Projetos que deixei pelo caminho ressurgiam fortes, cheios de vitalidade, com começo, meio e fim. Pensava em questões adormecidas, lembrava episódios curiosos.

O vento no rosto, o sol nascendo por trás dos prédios. A luz batia tão bonita que planejei reservar um dia da semana seguinte só para bater fotos da paisagem.

O combinado eram duas semanas, de segunda à sexta. No primeiro dia útil da semana que se seguiu, o sinal de wifi do celular denunciava que a internet de casa amanheceu com problemas. Tenho que disparar uma newsletter diária do Nexo de manhã bem cedinho, e faço isso do meu computador, ainda de pijama. Se saísse para correr, não daria tempo. Tive que pular um dia e fui para a redação mais cedo.

Foi a senha. Na terça-feira, garoava um pouco. O âncora do jornal das 5h falava de um caminhão que havia entalado no túnel da praça Roosevelt. Segurei dez minutos na cama, mas a voz ronronante me convidou de novo ao sono. Perdi a hora.

Na quarta nem tentei me enganar. Dei a semana por encerrada, planejando postergar a segunda semana do desafio, mesmo sabendo que não era o que eu tinha combinado com a revista.

Então pulei a semana seguinte. E a outra. E então veio a quarentena.

Meu rádio relógio quebrou. Ainda não segui com meus projetos. Mas esse texto, pelo menos, eu entreguei. Atrasado.

Antonio Mammi é editor do Nexo Jornal

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