Preço de Noiva, de Buchi Emecheta — Gama Revista

Trecho de livro

Preço de Noiva

Romance de 1976 da nigeriana Buchi Emecheta — autora que inspirou a geração de Chimamanda Ngozi Adichie — chega ao Brasil

Mariana Payno 22 de Janeiro de 2021

POR QUE LER?

O retrato ficcional do que poderia ser a vida real de muitas mulheres nigerianas é característica central da obra de Buchi Emecheta (1944-2017). Na verdade, a própria biografia da autora de títulos como “No Fundo do Poço” (1972), “Cidadã de Segunda Classe” (1974) e “As Alegrias da Maternidade” (1979) inspirou temas de sua literatura: o racismo, a vida de imigrante, a maternidade. Reconhecida mundialmente pela crítica, Emecheta foi uma das pioneiras a escrever sobre a condição da mulher africana e abriu portas para as gerações seguintes, como a de Chimamanda Ngozi Adichie e Ayòbámi Adébáyò.

Não foi, porém, um caminho fácil. Nascida em uma família igbo em Lagos, ela lutou para estudar e acabou cumprindo algumas regras da tradição: casou-se cedo e teve cinco filhos. Seguiu o marido rumo à Inglaterra, mas abandonou a relação abusiva e violenta e, sozinha, sustentou a família enquanto trabalhava na biblioteca do Museu Britânico, estudava sociologia na Universidade de Londres e escrevia romances na cozinha de seu pequeno apartamento.

Não à toa, Emecheta fala sobre como as meninas nigerianas são educadas para certas aspirações — o casamento e a maternidade — e o preço que podem pagar por não aceitar essa condição. Em “Preço de Noiva”, romance de 1976 agora publicado no Brasil pela Dublinense — que já trouxe outros títulos da escritora —, não é diferente. O livro conta a história da jovem igbo Aku-nna, que após a morte do pai deixa Lagos e retorna ao povoado rural de Ibuza. Lá, ela vive um amor proibido e fadado à tragédia com Chike, um descendente de escravos.


O caminhão atravessou rapidamente Sagamu e Okitipupa e muitas outras cidades iorubás. A princípio, as crianças ficaram fascinadas com a velocidade das casas que passavam e que, eles notaram, eram principalmente construídas de barro e tinham paredes menos lisas do que as das casas que eles costumavam ver em Lagos. Florestas densas pareciam o tempo todo prestes a engolir o caminhão, mas, de alguma forma, a estrada sempre encontrava um jeito de continuar, apesar da selva tropical. Havia árvores de noz-de-cola e de cacau na beira da estrada margeando diversas cidades, e os frutos carregados de nozes pendiam para baixo como os seios de uma mulher grávida.

As jovens moças se dirigindo aos riachos eram o tema mais popular e, conforme eles passavam por mais um riacho e ainda mais um grupo de meninas, as músicas ficavam cada vez mais engraçadas

Depois de Sagamu, os comerciantes no caminhão começaram a cantar. Viajar de e para Lagos era seu estilo de vida. Eles compravam tecidos, peixe seco e caixas de alimentos importados em Lagos, e a maioria dos comerciantes levava essas compras para Asaba e cruzava o Rio Níger para chegar ao grande mercado em Onitcha, onde podiam vender as mercadorias. Os comerciantes mais ambiciosos viajavam ainda mais longe interior adentro, até lugares como Aba e, assim, lucravam mais. O dinheiro que recebiam das vendas era usado para comprar, dos fazendeiros locais, inhames, sacos de garri e outros produtos que eram levados para serem vendidos em Lagos. Os comerciantes igbos nessa rota eram muito conhecidos por seus pequenos impérios de rápido desenvolvimento. Eles eram clientes regulares das muitas banquinhas de comida na beira da estrada, que forneciam purê de inhame e sopa com pedaços generosos de carne de caça. Também serviam barris e barris de vinho de palma para engolir tudo.

No caminhão que levava Ma Blackie e seus filhos, três quartos dos passageiros eram esses comerciantes. Eles tinham o hábito de tornar as viagens mais agradáveis inventando canções para o motorista, canções sobre qualquer coisa que enxergassem no caminho. As jovens moças se dirigindo aos riachos eram o tema mais popular e, conforme eles passavam por mais um riacho e ainda mais um grupo de meninas, as músicas ficavam cada vez mais engraçadas. Aku-nna se perguntava por que as meninas perto da estrada nunca se importavam em cobrir a parte de cima dos seus corpos, e a maioria não vestia nada, exceto alguma tanga colorida. É claro que os comerciantes compunham canções sobre moças com pernas de mosquito, moças com seios como abóboras, moças com pelos no peito.

Os vinhos de palma de diferentes cidades eram outro assunto para as composições musicais. Ubulu-okoti, por exemplo, era uma cidade igbo renomada por sua produção saborosa e inebriante. Todos — comerciantes, mulheres, crianças e até os passageiros de elite — acompanhavam as canções nostálgicas sobre essa cidade, seu vinho e suas jovens moças com seios grandes como calabaças. O clímax acontecia quando o motorista também se juntava ao refrão com sua voz especial de barítono e começava até a dirigir o caminhão em sintonia com a música: conforme o tom da canção subia, ele aumentava a marcha, criando a impressão de que o próprio caminhão estava balançando de acordo com a música. Era, de fato, uma viagem melodiosa até Asaba.

Havia outra coisa diferente nas pessoas ali: elas pareciam mais relaxadas, mais naturalmente bonitas que seus parentes em Lagos

A paisagem mudou levemente depois de Benim. O solo ficou mais vermelho, as folhas eram de um verde escuro que sugeria um toque de preto. As florestas ficaram realmente fechadas, como bosques misteriosos. Aqui se via uma trilha estreita como uma fita vermelha se enroscando nas profundezas misteriosas. Ali se via uma figura humana emergir como se saísse de um jardim secreto, carregando na cabeça um cacho de frutos de palma já maduros, com cor de sangue, ou uma menina com sua irmãzinha, correndo para dentro da densa floresta ao som do caminhão que se aproximava.

Perto de uma cidade chamada Agbor, eles passaram por um riacho que, conforme Ma Blackie disse aos seus filhos inquiridores, era conhecido como “Ologodo”. Aku-nna meneou a cabeça; dizia-se que sua madrinha era de Agbor Ologodo. Aku-nna pensou consigo mesma: então esse era o lugar de onde viera a mulher. Era difícil associar esse pequeno riacho, ao lado do qual meninas e mulheres tomavam banho, à sua madrinha que tinha se tornado tão rica e moderna em Lagos. Essas pessoas, assim como aquelas próximas a cidades iorubás, também se vestiam escassamente, e aquelas que estavam bem-vestidas, presumivelmente a caminho dos mercados, usavam seus lenços amarrados na cabeça de um jeito que parecia engraçado para Akunna. Eles não conheciam a moda de Lagos, explicou Ma Blackie.

Havia outra coisa diferente nas pessoas ali: elas pareciam mais relaxadas, mais naturalmente bonitas que seus parentes em Lagos. As mulheres todas tinham pescoços tão longos e mantinham a cabeça erguida, feito avestruzes, como se estivessem especialmente orgulhosas de si mesmas, e suas pernas graciosamente finas davam mais altura à sua aparência geral. Apenas os idosos eram vistos se curvando. Todas as outras pessoas se moviam com tal postura que lhes dava uma elegância crua e natural. Então o caminhão passou por um mercado: comparado aos grandes de Lagos, era um mercado de brinquedo, mas certamente mais barulhento. O cheiro de mandioca fresca se misturava ao cheiro de peixes vivos e óleo de palma e, sob o calor e a umidade, o cheiro parecia se grudar ao ar, pesado e tangível.

Todos os homens se comportavam assim? Seu pai era assim? O funcionário público bem-vestido, ainda abraçado à sua esposa adormecida, era assim?

Muito cedo na manhã seguinte, eles chegaram a Asaba. Como a mãe de Emeka tinha previsto no dia anterior, o caminhão deles foi o primeiro a chegar vindo do estacionamento de Iddo. O motorista tinha sido realmente veloz; ele provavelmente fora impulsionado pelas canções elogiosas dos passageiros. Aku-nna, que tinha amadurecido muito na sua mente desde a morte do pai, notou que, apesar do horário, todos os comerciantes homens sumiram para dentro da cidade. Ma explicou que a maioria dos comerciantes ricos tinham amantes ali e, quando chegavam tão cedo, eles iam às casas das suas namoradas pelo resto da noite. Essa revelação chocou um pouco Akunna, especialmente porque o motorista barbado foi um dos primeiros a se ausentar, carregando um lampião de parafina. Todos os homens se comportavam assim? Seu pai era assim? O funcionário público bem-vestido, ainda abraçado à sua esposa adormecida, era assim? Não, Aku-nna disse a si mesma. Seu pai fora diferente, e também o era esse funcionário público. Que o funcionário pudesse agir daquele mesmo modo pelas costas da esposa é algo que não ocorreu a Aku-nna.

Todo o mundo dos adultos estava ficando complicado demais, então Akunna parou de pensar nisso, seguiu o exemplo da mãe e pegou no sono. Com a maioria dos comerciantes nas casas de suas namoradinhas de Asaba, agora havia mais espaço para elas esticarem o corpo.

Produto

  • Preço de Noiva
  • Buchi Emecheta
  • Dublinense
  • 224 páginas

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