Desvio, de Juan Francisco Moretti — Gama Revista

Trecho de livro

Desvio

Romance de Juan Francisco Moretti, novo nome da literatura argentina, retrata as contradições da geração que cresceu nos anos 1990

Mariana Payno 09 de Outubro de 2020

POR QUE LER?

Não foi à toa que o jornal argentino La Nacíon listou Juan Francisco Moretti como um dos narradores do nosso tempo: o portenho faz parte de uma novíssima geração de escritores do país, que tenta entender, por meio da literatura, as contradições daqueles que cresceram na virada do século. Figurinha carimbada dos saraus de poesia de Buenos Aires, Moretti estreia na prosa com “Desvio”, romance narrado por um millennial bem ordinário — progressista, viciado em Google e nas redes sociais e com uma tendência a filosofar sobre o passado, o futuro e as mazelas do mundo pós-moderno.

Comparado a J.D. Salinger e Samuel Beckett, o autor novato passeia pelos dramas mundanos do protagonista e reconhece que estes partem de um lugar privilegiado do homem branco urbano. A partir de uma sequência de infortúnios na vida do personagem, evoca temas como a velhice, a morte, a violência nas cidades e a nostalgia. O que chama atenção na escrita de Moretti, porém, é a linguagem construída com uma dose de lirismo calcada na oralidade da primeira pessoa narrativa.

De quebra, a editora independente Ponto Edita faz um trabalho cuidadoso e nos entrega um belo livro: além de um criativo projeto gráfico, com intervenções do músico Thiago Petit e do artista Pedro Monfort, a edição brasileira traz uma nota inédita do autor e textos de Petit e do ex-VJ da MTV Luiz Thunderbird.


O Rasta é um sujeito fora de série. Tem o rosto e as mãos compridas, retas, com linhas profundas, e a languidez severa de seus gestos e palavras contradiz um pouco o dread único e compridíssimo que vai da nuca até a cintura. “Na sua idade”, ele me disse certa vez, “eu tinha na cabeça inteira, era ridículo”. Ele sempre fala assim, como se já tivesse vivido as coisas importantes e voltado há muito tempo e estivesse esperando o resto do mundo alcançar o seu ritmo. Tem uns 36, 37 anos e há dez é dono do Desvio, um desses bares de rock das quebradas de Palermo. “Na minha idade” cheirava pra caramba, mas parou, brigava pra caramba, mas parou, bebia pra caramba, mas parou, e fumava ganja todo dia. Isso não parou.

Vai fazer oito meses que entrei no bar para comemorar que tinha sido mandado embora do call center. Depois de dois anos desintegrando o espírito em um féretro com lâmpada halógena e drywall, seção Suporte Técnico, a demissão foi uma bênção. O futuro parecia fértil, a indenização parecia uma fortuna e aquilo tudo merecia uma noite de bebedeira e era uma oportunidade de se comportar como um imbecil. O Desvio era perfeito para isso: o álcool barato induz ao excesso, a escassez de mulheres favorece a incivilidade, a batida infernal da música fermenta o exagero e a escuridão esconde tudo; é um espaço sinergético de desorientação e ruptura. Com meu último cheque no bolso, entrei no bar, que estava quase vazio, e enquanto esperava meus amigos troquei duas palavras com o cara do dread que atendia no balcão. Contei orgulhoso que tinha sido mandado embora. “Vai fazer o quê?”, ele perguntou, “nada”, respondi eufórico. Ele me parabenizou sem muita convicção e me entregou uma garrafa de cerveja com um gesto compassivo de piedade infinita. Ou talvez não fosse gesto nenhum. Mas foi assim que interpretei vários litros depois, quando todos já tinham ido embora e eu estava em modo bêbado patético, com direito a fala enrolada, divagações, soluços e ranho. O Rasta nunca fala daquela noite lamentável, mas desde que comecei a trabalhar para ele, um mês depois, controla qualquer insolência excessiva da minha parte com um olhar sereno: o mesmo que me lançou quando me entregou guardanapos para eu assoar o nariz enquanto falava entre soluços do medo que sentia de tudo, do interesse por nada, do terror do silêncio e da luz, da decepção do amor, do meu pai e a vergonha, da minha mãe e a angústia. O mesmo olhar que me lançou quando disse, enquanto pegava um pano para eu limpar o vômito, que precisava de um garçom de segunda a quinta e para eu avisar se quisesse o trabalho. Na manhã seguinte, decidi nunca mais voltar naquele bar. Quatro segundas-feiras depois, apareci na hora de abrir, o Rasta me deu um balde e um pano e me ensinou um truquezinho para abrir a geladeira do fundo. “Pô, Rasta, valeu”, falei quando estava indo embora. “Suave, cara”.

É um cara gente boa. Não quero dizer com isso que seja uma dessas pessoas sem caráter de quem só podemos dizer que não são más; tampouco é um desses caras com códigos caninos que confundem condescendência com amizade. Pelo contrário, é minuciosamente crítico e quase sempre suas observações e seus conselhos não solicitados fazem dele um chato, mas seu modo de viver parece oferecer ao mundo mais o bem do que o mal, e isso para mim é um atributo de um cara gente boa. Tem história pra tudo, a maioria incomprovável. Passou, disse, sete anos vagando pelo mundo e conhecendo gente: viveu com os índios wichí, experimentou todos os cogumelos, todos os cactos, todas as flores, ensinou sabe-se lá o que numa escola rural no Brasil, trabalhou de cortador de cana em Caracas, foi preso na Espanha, limpou latrinas na Índia, foi percussionista de uma banda de jazz na Tailândia. Ali viveu numa praia paradisíaca por dois anos até que precisou voltar a Buenos Aires para cuidar da mãe, que tem arteriosclerose. “Minha casa fica do outro lado do mundo”, disse. Por isso, para ele esta cidade é um desvio, e por isso faz uma década que vive como inquilino entre este porta-papel higiênico com babadinhos e os sabonetinhos em forma de rosa para as visitas. Sua mãe gosta de flores. Poucos sabem, e menos ainda comentam, que o nome do Rasta, na verdade, é Florián.

Estou me sentindo muito bem, apesar da dor latejante na testa e atrás dos olhos e na coxa. Gosto de tomar banho quando estou muito sujo, de ver aquela água escura aos meus pés e sentir que me renovo, que controlo a transformação. Saio do banho suspirando de alívio. É a felicidade que conheço.

Acho que todas as felicidades são formas de alívio.

Produto

  • Desvio
  • Juan Francisco Moretti
  • Ponto Edita
  • 192 páginas

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