Debaixo do Mesmo Céu, de André Diniz e Luiza Leite — Gama Revista

Trecho de livro

Debaixo do mesmo céu

Coletânea de contos e crônicas de diversos autores cariocas retrata o prazer e a angústia do cotidiano no Rio de Janeiro

Mariana Payno 02 de Janeiro de 2021

POR QUE LER?

“Crônicas do cotidiano e memórias de um Rio de outrora, relatos futuristas e causos sobrenaturais, sonhos aprisionados ou roubados, mergulhos em universos particulares, o amor em todas as suas faces — até mesmo a mais cruel.” É assim que a tradutora e revisora Luiza Leite define a coletânea “Debaixo do Mesmo Céu”, organizada por ela e pelo professor e escritor André Diniz e recém-lançada pela editora carioca Numa.

De fato, os textos assinados por uma turma de autores fluminenses desenham um retrato multifacetado da cidade: entre folias e lutos, geografias urbanas e verões, verdade e ficção, diferentes tempos e realidades do Rio de Janeiro brotam das páginas. Sob o mesmo céu que vigia os morros e as praias, vozes díspares compõem esse quebra-cabeça feito de beleza e contradição — entre elas, os escritores Bárbara Caldas, Marcelo Moutinho e Alvaro Costa e Silva, o cartunista Cássio Loredano, a cineasta Railane Borges e o historiador Luiz Antonio Simas.

O carnaval, claro, é um dos protagonistas, como na crônica de Lia Calabre, professora da Universidade Federal Fluminense e pesquisadora aposentada da Fundação Casa de Rui Barbosa, que Gama publica a seguir. Escrito em 2017, o texto cai bem para um 2021 possivelmente sem festas: tem aquele gosto nostálgico de um verão que parece perdido nas lembranças mas que, ao mesmo tempo, nunca terminou.


Tempos de Carnaval

É quase dezembro e os ensaios das pastorinhas de Natal são um prenúncio do carnaval. Na zona portuária não tem mais pastoreio nesses anos 1970. Mas há prenúncios do carnaval. As quadras e as sedes dos blocos da região estão sendo pintadas, os instrumentos afinados, os diretores de alas se organizam e as disputas de samba já vão começar.

São vários blocos de embalo na região, são muitos brincantes (e era assim que se chamava? Acho que não!), bem, são muitos foliões nos quatro dias de carnaval. Alguns blocos mais antigos e tradicionais têm sede e quadra, alguns mais novos têm sede e rua. É verdade! A rua é de todos. Mas, nesses tempos pré-carnavalescos, algumas viram quadras e são completamente apropriadas pelos foliões apaixonados que esquentam os tamborins esperando o carnaval chegar. Não há conflitos, ao menos aparentes, nas ruas-quadras tomadas pelos ensaios carnavalescos.

Sim, os blocos de embalo têm alas, têm samba, têm cores fixas e fantasias

As alas são preparadas. Alas? Sim, os blocos de embalo têm alas, têm samba, têm cores fixas e fantasias. Ah! Têm também carro alegórico, rainha e princesas. Têm uns vermelhos e brancos, têm outros azuis e brancos, mas sempre com uns toques de dourado e prateado, pois sem brilho não é carnaval. Tem concurso para rainha! Com um bom padrinho e um pouco de samba no pé fica resolvida a disputa. “Tudo em prol da agremiação.”

Mas… E as alas? As alas, cada uma tem o seu diretor. Fantasias! Uma mais bonita que a outra. Sempre muito leves, de cetim macio, que se movimentam ao ritmo do samba. Qual será a ala mais bonita? E a que cantou mais a música? Hei, hei! Esse não é um bloco de embalo! Qual foi a mais animada?

Mas esperem. O carnaval ainda não chegou. Onde estão os desenhos das fantasias? Quem vai fazer as fantasias? É bem verdade que existem muitas costureiras nos bairros portuários, mas tem muito trabalho pela frente! Chapéus! Ah! Um pouco de ráfia em algum detalhe dá bons efeitos de movimento. Tamancos? Sapatilhas? Sandálias? Nada que os sapateiros da região também não possam fazer. Brancos, vermelhos, azuis…

São alguns muito jovens, alguns só jovens e outros nada mais jovens que se misturam, que se amalgamam, formando, compondo com suas diversidades os corpos carnavalescos unos

Chegou dezembro! Os ensaios vão começar! Mas, para ficar bom mesmo, tem que virar janeiro. Ensaios na sexta, ensaios no sábado e até no domingo. Muita gente pelas ruas internas dos bairros, um vai e vem constante nas pequenas e grandes ruas que se situam entre o cais, a estrada de ferro, o canal do mangue e a antiga Avenida Central.

No burburinho se escuta: Eu gosto mais desse! Pois eu daquele! Não tem samba como o do meu bloco! Vê se enxerga! Temos a melhor bateria. Mas as nossas passistas! E vai assim… No sobe e desce ladeiras, no cruzar avenidas, no se espalhar pelas praças, ruas e becos que perfazem o roteiro do carnaval da zona portuária. São alguns muito jovens, alguns só jovens e outros nada mais jovens que se misturam, que se amalgamam, formando, compondo com suas diversidades os corpos carnavalescos unos, verdadeiras nações, agremiações, ações.

É janeiro, o carnaval se aproxima! Decorar o samba. É importante decorar o samba, cantar forte. Ensaios. De música? Mas também de alas! Coreografias? Sim! Para conquistar os corações e agradar os olhos de quem assiste ao espetáculo. Samba, cerveja, ensaio, samba e cerveja. E vai seguindo janeiro.

Samba, cerveja, ensaio, samba e cerveja. E vai seguindo janeiro

Fantasia! Costura, aperta e borda! Alguns paetês, não muitos. Alguns fitilhos dourados, esses um pouco mais. Vai ficando bonito. Vermelho, azul, branco… Tem os estandartes! Muitos paetês e miçangas.

Fevereiro vai começar! Os ensaios se intensificam! Hora de iniciar os preparativos finais. Bateria nota dez (nove talvez)! Puxadores (ou intérpretes) afinadíssimos (ou quase). Alegorias quase prontas. Samba decorado (?)! Alegria nota mil.

E os desfiles onde serão? Na Rio Branco? Na Presidente Vargas? Pelas ruas do bairro? Vai ser uma alegria só. Descendo a ladeira, o Independentes do Morro do Pinto, subindo a ladeira, o Fala Meu Louro. Para o asfalto, o Eles que digam, circulando a praça, o Coração das Meninas. É isso, agora é só esperar o carnaval de 1974 chegar. Ainda que estejamos em julho de 2017. Mas… Isso já daria uma outra história.

Produto

  • Debaixo do Mesmo Céu
  • André Diniz e Luiza Leite (orgs.)
  • Numa Editora
  • 216 páginas

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