Novo romance de autora de 'A Vegetariana' — Gama Revista

Cultura

Atos Humanos

Em novo livro com prosa poética e brutal, a escritora Han Kang ficcionaliza massacre estudantil que deixou uma cicatriz na história da Coreia do Sul

Leonardo Neiva 14 de Maio de 2021

POR QUE LER?

Lançado inicialmente em 2007 na Coreia do Sul, com tradução para o inglês em 2016, o romance “A Vegetariana” (Todavia, 2018) caiu como uma bomba no mercado editorial global. Além de faturar o Man Booker Internacional Prize, um dos prêmios mais prestigiados da literatura mundial, a obra foi rapidamente apontada como um dos maiores destaques da escrita contemporânea e hoje já é visto por muitos como um verdadeiro clássico moderno.

A história de uma mulher que presencia os laços familiares e a própria sanidade mental se deteriorarem a partir da decisão de não comer mais carne nasceu da mente da romancista sul-coreana Han Kang, então ainda praticamente desconhecida no Ocidente. E agora chega ao Brasil, pela editora Todavia, outra de sua principais obras.

Em “Atos Humanos”, o adolescente Dongho procura o melhor amigo em meio aos milhares de corpos de estudantes e professores mortos pela repressão militar da Coreia do Sul de 1980. Baseado no episódio real de um massacre na cidade de Gwangju, ocorrido durante um levante estudantil, o livro se desdobra em capítulos nos quais a população de luto se depara com uma realidade de trauma e negação oficializada das dimensões da tragédia. Numa prosa que faz antagonismo entre a violência dos acontecimentos e a poesia que marca a escrita da autora, o romance é uma obra de rara beleza e brutalidade.


Parece que vai chover.

Murmuras alto.

O que faremos se chover forte?

Observas as nogueiras em frente ao Docheong1 com os olhos semicerrados. Como se, por entre os galhos oscilantes, pudesse se divisar a forma do vento. Como se as gotas da chuva que estavam se escondendo no ar fossem saltar e brilhar no vazio como gemas cristalinas.

Experimentas abrir mais os olhos. O contorno das árvores parece mais esfumado que há pouco, com os olhos semicerrados. Será que terei que usar óculos um dia? Veio-te à mente o rosto amuado do teu irmão do meio, com os óculos de armação quadrada de plástico marrom, e logo se dissipou entre os sons de gritos e de aplausos que vêm da fonte. Teu irmão disse que no verão os óculos escorregavam do nariz e, no inverno, sempre que entrava em lugares fechados, não conseguia enxergar, porque as lentes ficavam embaçadas. Será que dá para fazer a visão não piorar para se evitar os óculos?

Obedece enquanto estou falando com calma. Volta logo para casa.

Balanças a cabeça para esquecer a voz brava do teu irmão do meio. A voz vigorosa da jovem mulher que segura o microfone chega vibrando. Da escada de entrada do Sangmuguan2, onde estás sentado, não se vê a fonte. Para poderes ver a cerimônia de homenagem ao menos de longe, tens que sair do prédio pelo teu lado direito. Em vez de fazer isso, prestas atenção na voz da mulher.

“Pessoal, os nossos amados cidadãos que estavam sendo consagrados no Hospital da Cruz Vermelha estão vindo para cá.”

Por iniciativa da mulher, começa-se o Aegukga3. As vozes de milhares de pessoas se sobrepõem umas às outras como um pagode4 de milhares de metros e encobrem a voz da mulher. Tu também cantas, baixinho, seguindo aquela toada que sobe pesadamente e desce, resoluta, arrastando-se até o clímax.

“Quantos, no total, serão os mortos transferidos do Hospital da Cruz Vermelha hoje?” Quando, de manhã, fizeste essa pergunta, Jinsoo respondeu lacônico: “Serão mais ou menos trinta”. Enquanto o refrão daquela canção pesada se acumula como um pagode comprido e desce, arrastando-se, trinta caixões serão descarregados do caminhão, um a um. Serão postos ao lado dos vinte oito caixões que, de manhã, carregaste, junto com os meninos mais velhos, do Sangmuguan até a fonte.

Dos oitenta e três caixões que estão no Sangmuguan, vinte e seis não tinham passado pela cerimônia de homenagem coletiva, mas chegaram a vinte e oito, pois ontem à noite apareceram duas famílias, identificaram os cadáveres e os colocaram apressadamente no caixão. Escreveste o nome deles e onúmero dos caixões no livro, acrescentando, entre parênteses, “cerimônia de homenagem coletiva 3”. Pois Jinsoo havia pedido que os deixasses bem registrados para não enviar o mesmo caixão de novo para a próxima cerimônia de homenagem. Tu também querias participar da cerimônia dessa vez, mas ele te mandou ficar no Sangmuguan.

Dos oitenta e três caixões que estão no Sangmuguan, vinte e seis não tinham passado pela cerimônia de homenagem coletiva, mas chegaram a vinte e oito

“Talvez apareça alguém nesse meio-tempo. Fique aqui, velando-os.”

Todos os colegas mais velhos que trabalhavam contigo foram à cerimônia de homenagem. Os familiares dos defuntos, que passaram várias noites sem dormir em frente aos caixões, seguiram-nos como espantalhos recheados de areia ou pano, com laço preto no lado esquerdo do peito. Eunsuk, que ficara para trás, quando disseste que estava tudo bem, sorriu, mostrando levemente os dentes. Aqueles dentes tortos faziam com que a expressão dela tivesse algo de brincalhão, mesmo quando, por pena, sorria de modo embaraçado ou forçado. “Então… Já volto, vou ver só o comecinho.”

Deixado ali sozinho, sentaste na escada de entrada do Sangmuguan. Colocaste sobre os joelhos o livro com capa e contracapa de papelão preto. Sentias o frio da escada de cimento através da calça de ginástica azul-clara. Abotoaste completamente o uniforme da escola, que vestias sobre o de ginástica, cruzando firmemente os braços.

Rios e montanhas esplêndidos cheios de hibiscos-da-síria.

Paras de cantar e, repetindo “rios e montanhas esplêndidos…”, lembras do símbolo para a sílaba ryeo, “esplêndido”, que viste na aula de ideograma chinês. É um ideograma que não tens certeza como se escreve e que tem particularmente muitos traços. Significa a “natureza cujas flores são lindas” ou a “natureza linda como flores”? No quintal, as malváceas que no verão cresciam mais altas que tu se sobrepõem aos ideogramas. Talos compridos e retos dos quais brotam, indiferentes, cachos de flores como pedacinhos de pano branco. Querendo lembrar bem, fechas os olhos. Abre-os um pouco, e as nogueiras em frente ao Docheong continuam a balançar ao vento. Ainda não saltou nenhuma gota de chuva por entre o vento.

Mesmo tendo terminado o Aegukga, parece que a organização dos caixões não acabou. Ouvem-se vagamente os gritos de alguém entre o murmúrio da massa. Não sei se é para ganhar tempo, mas a mulher com o microfone sugere que, dessa vez, todos cantem o Arirang5.

O amor que foi embora sem mim
Terá dor nos pés antes de andar uma légua.

Após os choros diminuírem, a mulher fala:

“Vamos orar silenciosamente pelos que se foram.”

No momento em que o murmúrio de milhares de pessoas cessa, tu te surpreendes com o repentino silêncio ao redor. Em vez de orar em silêncio junto com eles, tu te levantas. Enfias o livro embaixo do braço e sobes as escadas em direção à porta de entrada do Sangmuguan, que havias deixado aberta. Pegas a máscara cirúrgica do bolso e a vestes.

Querendo lembrar bem, fechas os olhos. Abre-os um pouco, e as nogueiras em frente ao Docheong continuam a balançar ao vento. Ainda não saltou nenhuma gota de chuva por entre o vento

Acender velas não adianta nada.

Aguentando o cheiro, entras no auditório. Dentro, parece noite, porque o dia está nublado. Ao lado da entrada, os caixões que já passaram pela cerimônia de homenagem são reunidos de maneira ordenada, e os corpos das trinta e duas pessoas que ainda não puderam ser colocados em caixões, porque suas famílias ainda não chegaram, estão dispostos sob a grande janela, cobertos por panos de algodão branco.

Entras e caminhas até o fundo do auditório. Olhas para as compridas formas dos sete corpos deixados no canto. Estão cobertos até o topo da cabeça com panos de algodão branco, e são revelados apenas para as pessoas que estão procurando alguma jovem mulher ou criança. Pois as formas são cruéis demais.

Entre eles, o estado do corpo que está no canto, ao fundo, é o pior. Quando a viste pela primeira vez, ela era uma mulher pequena, com mais ou menos vinte anos, e agora o volume do corpo chegara ao tamanho de um homem adulto, devido à decomposição. Cada vez que o descobres e o mostras às pessoas que estão à procura de uma filha ou irmã mais nova, ficas surpreso com a velocidade da decomposição. Há na fronte dela, no olho esquerdo, na maçã do rosto e no queixo, no lado esquerdo do peito despido e no flanco, sinais de múltiplas punhaladas desferidas com uma grande espada. A parte direita do crânio parece ter sido golpeada por um cassetete e está afundada, podendo-se ver o cérebro. Aquelas feridas mais visíveis foram as primeiras a apodrecer. Em seguida, as contusões da parte superior do corpo também começaram a se decompor. Os dedos dos pés, cujas unhas estavam pintadas de cor transparente, estavam limpos e sem feridas externas, mas com o tempo engrossaram e enegreceram como pedaços de gengibre. A saia plissada com estampa de bolinha, que lhe cobria inteiramente os joelhos, agora não os cobre, inchados.

Voltas para a entrada. Pegas velas novas na caixa deixada sob a mesa e retornas para junto do corpo do canto. Inclinas o pavio de algodão da vela nova em direção à chama da gasta, que queima bruxuleante ao lado da cabeça. Quando a vela nova é acesa, apagas a gasta com um sopro, removendo-a do vidro com cuidado para não te queimar, e a substituis pela nova.

Estás com o torso inclinado, com a vela gasta ainda quente na mão. Aguentando o cheiro de cadáver, de fazer sangrar o nariz, contemplas a chama da vela. A parte externa e quase transparente da chama, que dizem ser capaz de inibir cheiros, arde tremeluzente. A parte interna, laranja, vacila calorosamente, como se quisesse encantar os olhos. No interior, vês oscilar o núcleo azulado da chama, em forma de um pequeno coração ou de uma semente de maçã.

Por não aguentar mais o cheiro, levantas o torso. Olhas o entorno escurecido, e as velas, vacilantes junto às cabeças, parecem te observar como calmas pupilas.

Quando o corpo morre, pensas de repente, para onde será que a alma vai? Quanto tempo será que fica ao lado do corpo?

Ao observar com atenção para ver se há mais velas para trocar, caminhas em direção à entrada.

Quando uma pessoa viva contempla uma pessoa morta, será que a alma do morto não contempla também o seu próprio rosto ao lado do vivo? Logo antes de sair do auditório, tu te viras e olhas. Não há almas em nenhum lugar. Há apenas os corpos deitados em silêncio e o miasma pungente.

Quando uma pessoa viva contempla uma pessoa morta, será que a alma do morto não contempla também o seu próprio rosto ao lado do vivo?

1Prédio do governo provincial, o ponto histórico do movimento pró-democracia de 18 de maio.
2Auditório, ao lado do Docheong, que foi usado para abrigar os cadáveres das vítimas do 18 de maio.
3O hino nacional da Coreia do Sul.
4Designação genérica, extensiva a templos asiáticos de diferentes cultos (sobretudo budistas e hinduístas), em geral em forma de torre, com vários andares, cada qual ladeado por beirais de pontas recurvas.
5Canção folclórica da Coreia, considerada hino não oficial da nação por representar, de forma romantizada, aspectos da cultura tradicional.

Produto

  • Atos Humanos
  • Han Kang
  • Todavia
  • 192 páginas

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