A Lua na Caixa d'Água — Gama Revista

Cultura

A Lua na Caixa d’Água

Em livro de crônicas, o escritor carioca Marcelo Moutinho homenageia o Rio, os grandes autores do gênero, o compositor Aldir Blanc, o samba e também sua filha de cinco anos

Leonardo Neiva 07 de Maio de 2021

POR QUE LER?

“Essa aqui, dentro da caixa d’água, é a lua da Zona Norte. Põe a mão nela… Tão distante na imensidão, a lua cheia, de repente, estava ali ao lado, passível de toque, trêmula e morna.” Assim o escritor e jornalista carioca Marcelo Moutinho ecoa as palavras de Aldir Blanc, compositor e cronista também carioca, morto em maio de 2020 por complicações de saúde devido à Covid-19.

A homenagem integra seu novo livro “A Lua na Caixa d’Água” e aparece na crônica de mesmo nome, que trata dos minúsculos detalhes que integram os pequenos momentos das nossas vidas — aqueles que parecem insignificantes em contexto, mas que acabam se mostrando inesquecíveis. Na mesma toada de uma prosa poética envolvente, Moutinho vai tecendo homenagens em forma de crônicas. E fala do bairro de Madureira, de grandes nomes da literatura e da crônica, como Rubem Braga e Carlos Drummond, do samba do Império Serrano e também de Lia, sua filha de cinco anos.

Vencedor do Prêmio da Biblioteca Nacional e finalista em premiações literárias de prestígio como o Oceanos e o Portugal Telecom, Moutinho é autor dos livros “Rua de Dentro” (Record, 2020), “Ferrugem” (Record, 2017), “Na Dobra do Dia” (Rocco, 2015), também de crônicas, e “A Palavra Ausente” (Rocco, 2011), entre outros. Em meio aos pequenos relatos do cotidiano que recheiam essa nova obra, Gama selecionou uma crônica sobre aqueles dias em que nada parece dar certo e outra centrada no luto pelos bares, referências da boemia e da convivência entre estranhos, que a pandemia nos tirou tão cedo e sem aviso.


Tem dias

Tem dias em que o copo de café cai da mão. Você coloca a quantidade de sempre, pinga o adoçante, pega o jornal, senta-se na cadeira pronto para mergulhar nas notícias de ontem e… tá lá o líquido derramado por toda a mesa, encharcando os papéis, pingando no chão.

Logo ao acordar o troço se anuncia. A pasta de dente no fim, uma espremida na ponta do tubo, para ver se ainda sai alguma coisa. Girada a torneira, a água do chuveiro não esquenta. É preciso mexer no aquecedor, que fica depois da cozinha, e a toalha fcou esquecida sobre a cama. Pegadas molhadas ao longo do chão do banheiro, do quarto, da sala. O pano para secar.

Logo ao acordar o troço se anuncia. A pasta de dente no fim, uma espremida na ponta do tubo, para ver se ainda sai alguma coisa

Falta um botão na camisa, a única passada. O cachorro não vem fazer festa. Vai melhorar, você diz a si mesmo. E repete: vai melhorar.

Mas o vagão está lotado.

Tem dias em que a etiqueta da camisa pinica, o melhor prato acaba, a azia manda lembranças. O salto quebra na falha da calçada e não há loja de sapatos por perto.

Nem sinal de internet. Com a rede intermitente, o trabalho vira uma queda de braço. Conecta, desconecta, conecta de novo, já foi.

Então a ideia de dar uma volta. O sol lá fora fabrica promessas.

Reunião. Sim, você havia esquecido. Pegar o táxi, depressa, telefonar.

Desculpe, atrasado, muito atrasado, mas a caminho. Não deu.

Tem dias em que as desculpas são para você mesmo, não para os outros.

Aquele dinheiro não entra, aquela frase não sai, aquela música não toca no rádio.

Vai melhorar, você diz, agora sem tanta certeza. E resolve ir para casa mais cedo, no conforto do Uber Black.

Um filme à noite, talvez, uma bobagem qualquer na TV. Mexer com fogão nem pensar. Delivery. Sushi ou pizza, uma lata de cerveja, duas, não mais. E cama.

O trânsito assim, a essa hora. Não é costume, não, senhor. Acho que foi o temporal. Também, com o calor que tá fazendo. Satisfeito com a temperatura do ar? Aceita uma bala?

Na hora e meia de banco traseiro, a leitura enjoa. Dá ânsia de vômito.

O trânsito assim, a essa hora. Não é costume, não, senhor. Acho que foi o temporal

Obrigado, senhor. Vou encerrar a corrida.

Tem dias em que você encontra a janela aberta, a sala alagada, a chuva pesa é dentro do peito.

E, no entanto, tem outros dias.

Pequena ilusão de eternidade

O escritor Franz Kafa imaginava uma reunião em que as pessoas aparecessem sem ser convidadas. Na qual poderiam se ver ou conversar sem necessariamente se conhecer direito — ninguém faria oposição à entrada ou saída de ninguém. O autor tcheco, contudo, nunca transformou essa alegoria em texto. Numa célebre crônica, Paulo Mendes Campos sugere o motivo: é porque ela já existe, corporifcada sob a forma do bar.

Quando vim morar na Rua Álvaro Ramos, há pouco mais de cinco anos, encontrei no Flor de Botafogo um nome para a imagem concebida por Kafa e redesenhada pelo cronista mineiro. O encanto foi imediato. Já o primeiro dia no novo apartamento, desci para uma cerveja no Flor. Não demorou até que amigos da vizinhança — o Paulo, a Joana, o Jason — pintassem na área. Logo conheceria o resto da trupe que fez do querido boteco uma extensão de suas, nossas, casas.

Nas mesinhas dispostas sobre a calçada, ante o olhar sempre atento do imperiano Bira, falamos de dores, as mais fundas, e alegrias. De perdas e ganhos. De livros, futebol, macumba, música, crianças — a vida que corria, apressada, ao menos até pararmos ali.

O bar, dizia o mesmo Mendes Campos, é onde o espinho da solidão dói mais ou menos. E assim sucede porque quando uma solidão encontra a outra, e há afeição, a morte começa a parecer algo distante. Entre conversas, copos americanos, saideiras, um vislumbre de utopia. Nossa pequena ilusão de eternidade.

O bar, dizia o mesmo Mendes Campos, é onde o espinho da solidão dói mais ou menos. E assim sucede porque quando uma solidão encontra a outra, e há afeição, a morte começa a parecer algo distante

Mas os bares morrem. E o Flor de Botafogo fechou suas portas. Não numa quarta-feira, como na crônica de Mendes Campos, mas numa sexta, a última de 2018. Nossa trupe passou a se arriscar em outras calçadas, outros balcões. Onde o Flor acaba sendo evocado, porque a saudade é um abismo que a gente precisa sobrevoar de vez em quando.

Ao caminhar recentemente pelo Centro, me espantei com a quantidade de comércios fechados. Por todo o Rio de Janeiro, e imagino que nas outras cidades o cenário se repita, a pandemia deixa seu terrível lastro. Morrem familiares, amigos, conhecidos e também espaços de pertencimento.

O El Cid, em Copacabana, com sua reluzente decadência; o Hipódromo, no coração do Baixo Gávea; o Esquimó, que por sessenta anos serviu almoço com refresco incluído a preço módico aos trabalhadores do Centro; o Almada, na Praça da Bandeira; o histórico Villarino. Todos foram obrigados a encerrar as atividades.

Outros estabelecimentos referenciais, como a Casa Paladino, lutam pela sobrevivência. Já são mais de mil bares e restaurantes fechados somente no Rio. Cada qual, assim como o Flor de Botafogo, encarnava um pequeno universo. Com seus fregueses assíduos, seus códigos, suas histórias.

Já são mais de mil bares e restaurantes fechados somente no Rio. Cada qual, assim como o Flor de Botafogo, encarnava um pequeno universo

O poeta Charles Baudelaire escreveu que uma cidade muda mais rápido que um coração mortal. A cidade se reconfgura e nossos afetos, como bússolas alquebradas, insistem em procurar o norte que já não existe. Falar em afeto num tempo em que a frieza contida na expressão “gelo no sangue” virou bordão, pretenso signo de poder, talvez seja um anacronismo. Mas a recordação do Flor de Botafogo e essa tristeza toda subitamente me lembraram outra flor, a de Drummond. Aquela que, ainda desbotada, furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. Quem sabe ela esteja em algum canto, no estado de semente.

Produto

  • A Lua na Caixa d’Água
  • Marcelo Moutinho
  • Malê
  • 160 páginas

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