Os artistas que previram a pandemia — Gama Revista
Jacob King / Getty Images

Os artistas que previram a pandemia

Trechos de obras de anos, décadas e até séculos passados parecem se referir à situação pela qual o mundo está passando hoje

Rachel Hadas* 21 de Novembro de 2020

“Recentemente, me peguei categorizando vários lançamentos que trazem presságios — trabalhos escritos e gravados meses ou até anos atrás, mas que parecem ter sido criados para falar sobre o momento atual. Só que a boa arte é sempre a que prevê o futuro, porque bons artistas estão ligados à frequência e ao ímpeto de seu tempo” — escreveu a jornalista de música Amanda Petrusich escreveu numa edição recente da New Yorker.

Aquela última frase, “à frequência e ao ímpeto”, lembra o conselho de Hamlet aos atores que visitavam a corte de Elsinore, sobre mostrar “a cada época e geração sua forma e efígie.” A ideia compartilhada aqui é que a boa arte passa uma imagem clara do que está acontecendo — mesmo, como Petrusich sugere, que aquilo ainda não tenha acontecido quando ela foi criada.

Bons artistas passam a impressão de, no nosso alarmante e prolongado tempo (eu ia escrever momento, mas me pareceu algo muito além disso), estar saltando meses, décadas e séculos para conversar diretamente conosco hoje.

‘Cavalgando em direção ao abismo sem fim’

Alguns dos excelentes trabalhos semelhantes ou antecipatórios da Covid-19 que tenho visto datam de meados do século 20. Claro, é possível ir muito mais longe, por exemplo, até as linhas do discurso que conclui “O Rei Lear”: “O peso destes tristes tempos devemos obedecer.” Aqui, no entanto, vão alguns exemplos mais recentes.

A boa arte é sempre a que prevê o futuro, porque bons artistas estão ligados à frequência e ao ímpeto de seu tempo

“O Tempo Redescoberto”, de Marcel Proust, uma evocação da Paris no período de guerra, em 1916, sugere fortemente a Nova York de março de 2020: “Na rua em que me encontrava, a alguma distância do centro da cidade, todos os hotéis… haviam fechado. O mesmo era verdade para quase todas as lojas, tendo os comerciantes, fosse devido à falta de funcionários ou porque eles mesmos estavam assustados, fugido para o interior e deixado os usuais avisos à mão anunciando que iriam reabrir em alguma data distante no futuro, ainda que mesmo aquilo parecesse problemático. Os poucos estabelecimentos que haviam conseguido sobreviver da mesma forma anunciavam que estariam abertos apenas duas vezes por semana.”

Recentemente, dei com alguns trechos da edição de 1958 do “Livro de Bolso do Verso Moderno”, de Oscar Williams (sem lançamento no Brasil) — ambos, surpreendentemente, de poemas escritos por autores que não são lembrados hoje primeiramente como poetas. Enquanto um número razoável de poetas incluídos nas antologias de Williams caiu no esquecimento, Arthur Waley e Julian Symons falam conosco ainda hoje, para nossos tristes tempos, de forma clara e ressonante.

De “Censura”, de Waley (1940):

“Não é difícil censurar notícias estrangeiras.
O que é difícil é censurar os pensamentos de alguém,
Sentar e observar o homem cego
No cavalo sem visão, cavalgando em direção ao abismo sem fim.”

Bons artistas passam a impressão de, no nosso alarmante e prolongado tempo, estar saltando meses, décadas e séculos para conversar diretamente conosco hoje

E de “Pub”, de Symon, que William não data, mas o qual eu suponho também vir dos anos de guerra:

“Os lares estão fechados e as pessoas vão para casa, somos deixados em
Nossa ilha de dor, os relógios começam a se mover e os poderosos
A agir, não há nada agora, nada de nada
Para ser feito: porque o problema é real: e o veredicto é final
Contra nós.”

‘Retornar ao que resta’

Mergulhando um pouco mais fundo, para dentro de “Os Espólios de Poynton”, de Henry James, de 1897, fiquei impressionado com uma frase da qual não me lembrava ou que não havia notado na primeira vez que li essa novela décadas atrás: “Ela não podia deixar sua própria casa sem risco de se expor”. James usa a infecção como uma metáfora; mas o que acontece com uma metáfora quando vivemos em um mundo no qual literalmente não podemos deixar nossas casas sem risco de nos expormos?

O que acontece com uma metáfora quando vivemos em um mundo no qual literalmente não podemos deixar nossas casas sem risco de nos expormos?

No romance de Anthony Powell, “Reis Temporários”, ambientado nos anos 1950, o narrador medita sobre o que atrai as pessoas a encontros com velhos companheiros de guerra. Mas a ideia por trás da pergunta “Como foi sua guerra?” se estende para além da experiência militar compartilhada: “Quando algo grave como uma guerra acontece, toda a existência revirada de cabeça para baixo, a vida pessoal descartada, todo relacionamento reorganizado, há uma tentação, após o fim de tudo, de retornar ao que resta… cavoucar entre os resíduos curvos e enferrujados, avaliar méritos e defeitos.”

A pandemia ainda está acontecendo. É muito cedo para “retornar ao que resta.” Mas não conseguimos parar de querer pensar justamente nisso. A literatura nos ajuda a olhar — como lembrou Hamlet — para o antes e o depois.

*Publicado originalmente em The Conversation, em inglês. Traduzido por Leonardo Neiva

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