Como é bela esta autora — Gama Revista

Como é bela esta autora

Em novo romance, Elena Ferrante insiste em temas que são caros a ela e, assim, enriquece ainda mais sua obra

Giuliana Bergamo 31 de Agosto de 2020

A relação sinuosa entre realidade e ficção – ou verdade e mentira – é o tema central do novo romance de uma das escritoras mais festejadas da atualidade, a italiana Elena Ferrante. Por cinco anos, a autora de “A Amiga Genial” (Biblioteca Azul, 2015), uma tetralogia que já vendeu mais de 16 milhões de exemplares e deu origem ao seriado “My Brilliant Friend”, da HBO, ficou sem publicar. A ausência, no entanto, acabou. Nesta terça-feira (1), chega às livrarias do Brasil e de outros 26 países “A Vida Mentirosa dos Adultos”, versão em língua portuguesa de “La Vita Bugliarda Degli Adulti”, traduzido aqui por Marcello Lino e editado pela Intrínseca.

Como é típico no universo da autora, na superfície, a narrativa pode parecer um tanto prosaica. Em 432 páginas, Giovanna narra seu ingresso na adolescência, dos 12 aos 16 anos. Nesse momento híbrido da vida em que já não somos mais crianças, tampouco adultos de verdade, a garota vê (e faz) a aparente harmonia da vida familiar ruir depois de ouvir o pai dizer que ela é feia. “Dois anos antes de sair de casa, meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia”, é a frase que abre o romance. Mas estamos falando de Ferrante, então o que vem pela frente é um mergulho mais profundo em um emaranhado que não se restringe à narrativa do livro.

O que Andrea diz sobre a filha, descobrimos páginas depois, não foi exatamente isso. Ele a comparou à irmã com quem não se dá e que nunca foi apresentada à menina. “Não tem a ver com a adolescência: está ficando a cara de Vittoria”, disse à mulher, em uma conversa que travavam sem saber que Giovanna os escutava. É a partir daí que a garota tira suas conclusões. “Foi assim que, aos 12 anos, soube pela voz do meu pai, sufocada pelo esforc?o de mante?-la baixa, que eu estava ficando igual a? sua irma?, uma mulher na qual — eu o ouvira dizer desde sempre — feiura e maldade coincidiam perfeitamente”.

Alvo de críticas, a repetição de temas pode ser vista de maneira inversa: Ferrante é comprometida com eles e capaz de revisitá-los de formas distintas

A descoberta acende sua curiosidade pela herança familiar escondida. Assim, vasculha os guardados da mãe, mas encontra uma tia de rosto apagado. Na única fotografia em que Vittoria aparece, sua figura foi coberta por um retângulo preto, feito a caneta. Decidida a encarar sua origem, a menina, que vive no Rione Alto, uma região mais rica de Nápoles, desce à parte baixa da cidade, onde mora a família paterna desconhecida até então.
Giovanna está em busca da tia, mas o que procura – e com o que se defronta – é sua própria identidade: “Sol, calor, chuva, vento, frio, e eu andando, andando entre mil perigos até encontrar meu próprio futuro de mulher feia e pérfida”. Na incursão, abandona o figurino infantil e cor de rosa estimulado pela mãe e passa a vestir roupas escuras, descobre o cheiro de “latrina” dos garotos, faz sexo pela primeira vez e passa a mentir. Tudo isso enquanto os pais que, aparentemente, viviam um relacionamento sólido – uma relação, é claro, de mentira – se separam.

Estão presentes aí elementos já comuns à obra de Ferrante: uma incursão por Nápoles, vivida por uma narradora às voltas com sua condição de mulher, assombrada pela herança feminina, incomodada com a presença masculina e, ao mesmo tempo, incapaz de se desvencilhar completamente da influência que os homens exercem sobre ela.

A repetição de temas já vem sendo motivo de críticas negativas. Mas o fato pode ser visto de maneira inversa, como uma qualidade e tanto. Ferrante faz parte, afinal, de uma classe de artistas tão comprometidos com os temas que os movem, que não abrem mão deles a cada obra. E são capazes de revisitá-los de diferentes formas.

No novo romance, Ferrante inverte um pouco as coisas. Giovanna não tem grandes dilemas com a mãe, como todas as outras narradoras da autora. É a raiz paterna que a incomoda. Além disso, ela faz o caminho inverso de Lenu, sua mais famosa narradora, da tetralogia. Enquanto uma luta para se afastar física e emocionalmente das suas origens geográficas (a periferia de Nápoles) e familiares, a outra quer justamente imergir no submundo da cidade e de sua herança paterna.

Mais do que compará-lo a seus pares, portanto, “A Vida Mentirosa dos Adultos” merece ser lido individualmente, ou – o que parece ainda mais interessante – como uma nova peça essencial de uma obra que já existia. É um novo mergulho na profundidade do universo em constante expansão criado pela italiana.

Desde o título, Ferrante traz de volta o tema que é fundante de seu trabalho e de sua existência como autora: as “mentiras que dizem sempre, rigorosamente, a verdade” para citar uma das cartas que fazem parte de “Frantumaglia – Os Caminhos de uma escritora” (Intrínseca, 2017). Trata-se do único livro de não ficção da escritora, mas que pode ser lido, ele também, como mais uma das peças dessa grande obra de ficção. Isso porque, precisamos lembrar, Elena Ferrante é o pseudônimo de uma escritora que se apresenta ao mundo assim como tia Vittoria aparece nas primeiras páginas do novo romance: sem rosto.

Sua identidade secreta nos permite olhar para ela como um ser de ficção, que se mistura ao universo ficcional das histórias que cria

Só que, ao contrário da personagem, a pessoa de carne e osso por trás dos sucessos literários continua sem ser revelada. E isso nos permite olhar para ela como um ser de ficção, que se mistura ao universo ficcional das histórias que cria. Na obra de Ferrante, mentiras e verdades se fundem e confundem, assim como acontece com as personagens dentro dos livros – “Eu queria entender se minha tia estava de fato aflorando em meu corpo”, diz Giovanna –, entre eles ou mesmo com a escritora, suas narradoras e o conjunto da obra.

Em “A Vida Mentirosa dos Adultos”, essas misturas ficam evidentes já na primeira página, quando Giovanna narra: “Eu escapei para longe e continuo a escapar tambe?m agora, dentro destas linhas que querem me dar uma histo?ria, enquanto, na verdade, na?o sou nada, nada de meu, nada que tenha de fato comec?ado ou se concretizado: so? um emaranhado que ningue?m, nem mesmo quem neste momento escreve, sabe se conte?m o fio certo de uma histo?ria ou se e? apenas uma dor embaralhada, sem redenc?a?o”.

Como escreve a pesquisadora Fabiane Secches, autora de “Uma Longa Experiência de Ausência” (Claraboia, 2020), sobre a obra de Ferrante: “Essa mesma passagem poderia ter sido narrada por Elena Greco, da tetralogia napolitana; por Leda, de ‘A Filha Perdida’; por Olga, de ‘Dias de Abandono’; ou por Delia, de ‘Um amor Incômodo’. Para os leitores de Ferrante, esse tom é um velho conhecido”.

O trecho poderia ainda estar na boca da própria Ferrante (ou nas letras, já que ela só se manifesta por textos). Afinal, ele soa como uma confissão de uma autora que sempre nos escapa, que nos enreda em um grande emaranhado de onde temos dificuldade de sair – se é que temos algum interesse em fazer isso. Sobre a passagem, Marcello Lino, tradutor deste e dos outros quatro livros de Ferrante publicados pela Intrínseca, vai além: “Esse trecho permite a dúvida sobre quem é, de fato, que narra essa história”.

Em “A Vida Mentirosa dos Adultos”, Ferrante parece estar colocando em prática um desejo antigo, declarado em uma das cartas publicadas em “Frantumaglia”, sob o título de “Como é Feia Essa Menina”, em referência ao romance célebre de Gustave Flaubert, “Madame Bovary”. No texto, ela conta sobre o impacto que o livro lhe causou, sobretudo a declaração: “É estranho como é feia esta criança”, dita pela protagonista sobre sua filha Berthe. Identificada com a menina, a Ferrante leitora se fundiu com a personagem do clássico: “… enquanto lia, eu era Berthe”, escreveu.
Encontrou na cadência do idioma francês semelhanças com sua língua materna, o napolitano, e foi capaz de ouvir sua própria mãe dizer “comm’è brutta chesta bambina” (“como é feia esta menina”).

Na carta, a italiana faz ainda reflexões sobre o gênero de quem seria capaz de proferí-la: só um homem, como era o caso de Flaubert, que a colocou na boca de uma personagem feminina, ou até mesmo uma mulher? E diz: “Por isso tento, ao longo dos anos, tirar aquela frase do francês e colocá-la em algum lugar de uma página minha, escrevê-la eu mesma para sentir seu peso, transportá-la para o idioma de minha mãe, atribuí-la a ela, ouvi-la saindo de sua boca e entender se é uma frase feminina, se uma mulher pode de fato pronunciá-la, se eu alguma vez pensei nela em relação a minhas filhas, se, enfim, deve ser repudiada e apagada ou acolhida e retrabalhada, retirada da página em francês masculino e transportada para a língua da mulher-filha-mãe”.

É no mínimo curioso notar, então, que Ferrante, célebre também por desafiar os tabus acerca de autoria feminina, por criar narradoras e personagens mulheres que escrevem e contam histórias a partir das particulares e complexidades de seus mundos, tenha escolhido reescrever a frase de Flaubert provocando uma fratura na relação entre um pai e uma filha e não, como é marcante em sua obra, em uma história em que o conflito está na relação entre mãe e filha.

O livro já chegou às livrarias italianas imerso em especulações. A principal delas era a de que ele seria o primeiro de uma nova série. O anúncio de que a Netflix vai adaptar a história em um seriado reforça os rumores – a plataforma, afinal, não costuma apostar em sucessos de uma temporada só. Além disso, é verdade que o final dá margem a desdobramentos. Mas não são necessários novos livros para expandir o romance. A obra da autora já se desdobra e aprofunda nela mesma. Comm’è bella chesta Ferrante!

Giuliana Bergamo é jornalista e mestre em literatura e crítica literária pela PUC-SP. Em sua pesquisa, investigou narradoras de obras de Ana Maria Machado e Elena Ferrante

Produto
  • A Vida Mentirosa dos Adultos
  • Elena Ferrante
  • Intrínseca
  • 432 páginas

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