O que fazer com os clássicos infantis problemáticos? — Gama Revista

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Ler ou não ler, eis a questão

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De Dr. Seuss a Monteiro Lobato, autores do passado estão sendo problematizados pelo conteúdo racista em suas obras. Gama ouviu três escritores infantis para entender o que deve ser feito com esses clássicos

Daniel Vila Nova 16 de Março de 2021

No começo de março, seis livros do autor infantil Dr. Seuss (1904 – 1991) foram retirados de circulação por conterem ilustrações consideradas racistas e ofensivas. A iniciativa foi da Dr. Seuss Enterprises, empresa criada para proteger o legado do escritor e ilustrador norte-americano — um dos maiores autores de literatura infantil dos EUA, criador dos personagens “Grinch”, “Lórax” e o “Gatola da Cartola”. Os livros do escritor passaram por uma análise feita por um painel de especialistas que entendeu que algumas das histórias retratavam grupos minoritários de maneira “dolorosa e errada”. “Interromper a venda desses livros é apenas parte do nosso comprometimento e do plano para garantir que o catálogo da Dr. Seuss Enterprises represente e apoie todas as comunidades e as famílias”, afirmou a empresa em comunicado no aniversário do escritor.

Os livros que deixarão de ser publicados são –“And to Think That I Saw It on Mulberry Street” (1937), “If I Ran the Zoo” (1950), “McElligot’s Pool” (1947), “On Beyond Zebra!” (1955), “Scrambled Eggs Super!” (1953) e “The Cat’s Quizzer” (1976). Os maiores sucessos de Dr. Seuss, como “The Cat in the Hat” (1957), “How the Grinch Stole Christmas!” (1957) e “The Lorax” (1971), não foram afetados pela mudança editorial.

O “And to Think That I Saw It on Mulberry Stree” (1937) foi um dos retirados de circulação pela Dr. Seuss Enterprises. Na imagem, uma representação racista de um homem chinês /Reprodução

A decisão da companhia ganhou repercussão nacional e internacional e, em poucas horas, o debate sobre os acertos e perigos da cultura do cancelamento já estavam a todo o vapor nas redes sociais, programas de TV e sites de notícias. O “cancelamento” de Dr. Seuss — realizado pela própria marca do autor — é só mais um dentre os inúmeros casos de artistas que estão sendo revisitados nos últimos anos. De Mark Twain à H. P. Lovecraft, a maneira com que clássicos do passado retratam tópicos sensíveis está sendo cada vez mais problematizada e o debate sobre o que fazer com o legado desses artistas é mais quente do que nunca.

Todos acreditam que algo deve ser feito, mas ninguém sabe exatamente o quê (ou como). O cancelamento, pro sua vez, pode não ser totalmente ruim para os cancelados. Após a decisão da Dr. Seuss Enterprises, os livros do Dr. Seuss foram rapidamente para a lista de mais vendidos da Amazon. Falem bem ou falem mal, mas falem de mim.

O debate é mais complexo porque trata de livros infantis, o que nos faz questionar a visão de mundo que queremos apresentar para a próxima geração. Gama conversou com três autores de literatura juvenil para entender o que devemos fazer com o bicho papão dentro e fora dos livros.

O julgamento de Monteiro Lobato

Falar de cancelamento na literatura infantil brasileira é falar sobre Monteiro Lobato: o criador do Sítio do Pica Pau Amarelo vem sendo acusado de racismo há quase uma década. Além dos seus livros, que contêm trechos como o que Tia Nastácia é chamada de “macaca de carvão”, as cartas pessoais do autor põem combustível na discussão — em mais de uma oportunidade, Lobato expressou sua simpatia ao movimento eugenista brasileiro e chegou a afirmar que o Brasil era um “país de mestiços, onde o branco não tem força para organizar uma Klux Klan, é [um] país perdido para os altos destinos.”

Em 2019, a obra de Monteiro Lobato entrou em domínio público e o debate sobre seu racismo ganhou ainda mais tração. Os defensores do escritor acreditam que suas falas não são interpretadas da maneira correta e que não representam a totalidade do pensamento e de sua obra. Já seus detratores afirmam que as criações são tão racistas quanto o autor.

Para o escritor Pedro Bandeira, responsável pela série “Os Karas” e pelo livro “O Fantástico Mistério de Feiurinha” (Moderna, 1986), condenar Lobato é esquecer o contexto em que ele vivia. “Lobato era um homem amargo, sem papas na língua quando falava ou escrevia. Não quero defendê-lo, suas cartas são de arrepiar o cabelo, mas é preciso lembrar que na época grande parte da população brasileira era eugenista.”

O autor, que é um estudioso da vida de Monteiro, não nega que ele tenha cometido racismo, mas acredita que o problema é muito mais profundo. Sendo o Brasil um país construído em cima do racismo e da exclusão de mais da metade da população brasileira, Bandeira acredita que é injusto colocar a culpa em um único homem quando muitos outros também cometeram o mesmo erro. “Se é para cancelar Lobato, temos de cancelar Euclides da Cunha e todos os que viveram naquela época. Não podemos botar essa culpa nas costas de um dos maiores escritores que o Brasil já teve e perder a beleza e as maravilhas que ele criou em seus livros infantis.”

Tia Nastácia, a cozinheira e contadora de histórias do Sítio, em Reinações de Narizinho (1931) /Reprodução

Bandeira relembra que Lobato descreve a pele de Narizinho como cor de jambo, coloração similar a pele de uma pessoa negra, mas que todas as ilustrações da personagem a retratam como branca. “Por que não a colocaram negra? Eu não sei, mas o texto dele não mudou. Se ele fosse tão racista, por que faria a sua principal heroína negra?”

“A história do Brasil foi e continua sendo a história dos brasileiros privilegiados que por acaso nasceram com a pele branca, é uma história de exclusão. Ao invés de assumirmos essa culpa, perseguimos Monteiro Lobato. Racistas somos nós, o povo brasileiro”, afirma o autor.

Em 2019, Pedro Bandeira lançou sua própria adaptação do Sítio do Picapau Amarelo intitulada “Narizinho, a menina mais querida do Brasil” (Moderna, 2019). O autor garante que não censurou nada, apenas focou no que há de melhor em Lobato. “Minha adaptação é do primeiro livro dele, onde não há nenhum traço de racismo. Utilizei algumas ideias que ele desenvolveu em outros livros, como a pílula falante da Emília, mas não mudei nada. Ali, só há a beleza de Lobato”, diz Bandeira.

O escritor admite que, enquanto pai, avô, professor e autor, não recomendaria livros como “A Caçada de Pedrinho” — que contém trechos racistas — para crianças, mas acredita que não devemos impedir ninguém de ler Lobato. “Li os livros dele de cabo a rabo e sempre fui antirracista. Temos que fazer as crianças lerem muito e lerem o que quiserem. Elas são muito inteligentes, terão consciência crítica quando necessário.”

Ampliando os horizontes

Heloisa Pires Lima, autora de “A semente que veio da África” (Salamandra, 2005) e doutora em antropologia social com foco em representações culturais, pesquisa questões raciais envolvendo a obra de Lobato e acredita não ser mais necessário discutir a dimensão do racismo na obra do autor porque, para ela, é óbvio que argumentos racistas estão presentes no repertório lobatiano. “Há um esforço na produção editorial para limpar a presença de termos e construções racistas na sua obra, mas isso não é o suficiente. Você pode limpar a obra, mas a biografia do autor continua.”

A escritora entende que a discussão sobre Lobato é maior do que o próprio autor, atingindo o imaginário de inúmeras gerações que cresceram com o Sítio do Picapau Amarelo. “O dia nacional do livro infantojuvenil é o dia de nascimento de Lobato, você tem bibliotecas que recebem o nome dele. Como ficam as crianças negras que têm de exaltar a memória de alguém que acredita que elas não deveriam existir?” Lima entende que o problema não é exclusivo de Lobato, que há uma falta de cuidado generalizada com infâncias que por muito tempo foram esquecidas. “Quando ele escrevia, não pensava no leitor negro, mas hoje não podemos mais ignorar essas crianças.”

Pedrinho e Saci em “O Saci” (1921) de Monteiro Lobato /Reprodução

Ela acredita que o Brasil é muito fixado em Lobato e que acaba por esquecer toda uma produção fantástica fora dessa. A pesquisadora recorda que, enquanto criança negra, foi formada por livros majoritariamente europeus e brancos e que essa tendência, por mais que tenha diminuído, ainda é forte nos dias de hoje. “Não há uma única resposta para o cancelamento de Lobato, Dr. Seuss, Hergé e Disney, cada caso é um caso. Mas não devemos apenas nos pautar nessas obras e sim expandir e ampliar as referências na literatura infantil, apresentando diversas humanidades e realidades diferentes de forma igualitária.”

Para a autora, o fato da própria editora do Dr. Seuss retirar os livros nos Estados Unidos é emblemático, mas ela não acredita que o mesmo seria possível no Brasil. “Toda sociedade tem que lidar com essas questões, mas o Brasil não costuma colocar o racismo em pauta. Precisamos pensar sobre as camadas racistas presentes em nossos imaginários. Não existe meio racismo, ou você alonga para o futuro ou você estanca ele no presente.”

Adaptar ou não adaptar, eis a questão

Jim Anotsu, autor de “A Batalha do Acampamonstro” (Nemo, 2018), define o seu relacionamento com Lobato como complexo e conturbado. “Quando criança, lia Lobato e ficava incomodado com os trechos racistas, mas não sabia entender e articular como aquilo me machucava.” Adotado, o escritor era o único negro em sua família e teve dificuldades ao apontar os erros de Lobato pois as pessoas tinham a memória da adaptação televisiva do Sítio e não do texto original.

Anotsu se afastou de Nariznho, Emília e Pedrinho durante anos, mas quando decidiu se tornar escritor de literatura infantil se viu obrigado a voltar para os escritos lobatianos. “É impossível escapar da sombra de Lobato ao escrever literatura juvenil no Brasil. Mesmo que você não leia, ele influenciou quem você vai ler.”

Jim Anotsu é um dos responsáveis pelo roteiro do filme “De Volta ao Sítio do Picapau Amarelo”, que deve ser lançado em 2022. Ao ser chamado para escrever a nova adaptação, o escritor voltou mais uma vez sua atenção para Lobato e releu toda a obra com o olhar crítico que lhe faltava na infância. “Quando recebi o convite para escrever o filme, percebi que poderia trazer o meu próprio tom para essa narrativa.”

Outra grande influência de Anotsu é o autor H. P. Lovecraft, ícone do gênero de terror e um grande racista. “É interessante falar sobre Lovecraft e Lobato porque os dois são muito influentes nas suas respectivas áreas, terror e infantojuvenil. Sinto que os dois influenciam muito o que escrevo, mas nos meus livros os protagonistas são negros.”

O Acampamonstro tem muita influência de Lovecraft, e o autor brinca que o romance faz parte dos mitos de Cthulhu — nome dado a mitologia criada por Lovecraft. Anotsu, entretanto, acredita que o seu trabalho é roubar o que veio do passado e transformar em algo novo para o futuro. Para ele, ressignificar, recriar e recortar obras do passado é a oportunidade perfeita para questionar as narrativas e as visões de mundo ultrapassadas e inadequadas presentes em alguns clássicos.

“Quando falamos sobre livros em domínio público, adaptações e recriações são a norma. É mais fácil achar edições adaptadas de clássicos do que os originais, mas tenho certeza que Monteiro Lobato não vai acabar e que ainda será possível comprar as versões originais.” Para o autor, a solução passa pela contextualização e explicação do que está sendo lido para as crianças, e que é responsabilidade dos pais separar o joio do trigo.

Anotsu não acredita que os clássicos devam ser abandonados ou esquecidos, mas sim questionados e desafiados. Ele, entretanto, afirma que uma boa solução para o problema é procurar por novas histórias que já foram ou estão sendo escritas. “Lobato viveu na década de 20, será mesmo que nossa literatura juvenil não criou nada que compense ser lido além de Lobato neste último século? Por que ainda estamos brigando por um autor que já morreu há mais de 70 anos?”, questiona Anotsu.


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