As manifestações políticas no mundo do K-pop — Gama Revista
© ©Reprodução Instagram /Gettyimages

K-pop e ações políticas

Donald Trump levou uma rasteira dos fãs de K-pop. Mas não é a primeira vez que esses grupos e artistas se movimentam politicamente. De boicote a doações, eles se tornam vozes importantes no debate público

Daniel Vila Nova 23 de Junho de 2020

O presidente americano Donald Trump se encontra em uma posição delicada. Às vésperas da eleição, ele vê seu rival, o democrata Joe Biden, a frente nas pesquisas de intenção de voto.

Some isso a sua atual impopularidade, a crise do coronavírus e a recessão enfrentada pelo país e é possível entender a situação delicada do líder americano. Entretanto, sua última derrota política foi orquestrada por um grupo improvável, mas extremamente poderoso: fãs de K-pop.

No sábado, dia 20, Trump realizou um comício eleitoral na cidade de Tulsa, em Oklahoma. Animados com a resposta da base eleitoral, a equipe do presidente afirmou ter recebido mais de 1 milhão de pedidos por ingressos do evento.

O que eles não esperavam era a organização informal dos fãs de K-pop, que se cadastraram para o comício de Trump com o objetivo de inflacionar o público do evento. Quando o dia 20 chegou, inúmeras cadeiras estavam vazias no BOK Center, arena com 19 mil assentos. De acordo com o corpo de bombeiros da cidade, apenas 6.200 desses lugares estavam ocupados.

Essa não é a primeira movimentação política dos kpoppers. Durante os protestos pela morte de George Floyd, os fãs se reuniram em diversas ações virtuais. Em uma delas, sabotaram o aplicativo da polícia de Dallas que servia como ferramenta para identificar protestantes violentos. Outra ação semelhante ocorreu contra movimentos virtuais opostos a iniciativas antirracistas — os fãs descarregaram uma tonelada de conteúdos de K-pop nas hashtags rivais, desvirtuando o objetivo original e tornando o protesto inútil.

Mas não são só os fãs que se posicionam. O BTS, maior fenômeno da música sul-coreana, doou U$ 1 milhão de dólares para o movimento “Black Lives Matter”. Após a doação, os fãs da banda arrecadaram um valor ainda maior para a organização antirracista — US$ 1,2 milhões em apenas um final de semana.

Apesar da força do gênero musical, manifestações políticas não são a coisa mais comum na vida de artistas do K-pop. Conhecidos como Ídols, os músicos fazem parte de um modelo rígido da indústria musical coreana. “O Ídol é um personagem produzido por essa indústria para se comportar e viver de uma certa maneira, atraindo e agradando um público fiel”.

Quem diz isso é Babi Dewet, ela e Érica Imenes são as autoras do livro “K-Pop – Manual de Sobrevivência: Tudo o que você precisa saber sobre a cultura pop coreana” e apresentadoras do “Kpapo”, podcast sobre K-pop do Spotify.

“A expressão, em português ídolos, foi feita originalmente para colocá-los nesse patamar inalcançável”, complementa Imenes. Quanto mais perfeitos, mais apelativos eles são para a audiência que consomem suas músicas. Nesse cenário de muita pressão, falar o que pensa não é incentivado.

Mas existem aqueles que ousam se posicionar contra uma série de tabus da sociedade coreana — e mundial — , afrontando a noção de perfeição da figura do Ídol e, muitas vezes, pagando um preço alto por exporem sua opinião.

Conheça os Ídols que botam a boca no microfone para falar das questões sociais que assolam a Coreia do Sul e o mundo.

Saúde mental e suicídio

A doação ao “Black Lives Matter” chamou a atenção do mundo, mas o BTS já toca em assuntos importantes há anos. Constantemente comparados aos Beatles, o grupo surfa em um sucesso sem precedentes para artistas que não compõem 100% de suas letras em inglês. Eles usam essa influência para discutir assuntos como saúde mental.

“Map of the Soul: Persona”, o álbum lançado pelo grupo em 2019, baseia todo seu conceito nas ideias de Carl Jung, pai da psicologia analítica. Com um disco dedicado a um dos pilares da psicologia moderna, não é de se espantar que o grupo aborde temas de saúde mental em suas obras e entrevistas.

O assunto é tabu por lá — A Coreia do Sul é líder em taxa de suicídios nos países da OCDE, com a marca de 25.6 mortes a cada 100 mil habitantes em 2016 — e diversos fãs agradecem o grupo sul-coreano pela ajuda com questões de saúde mental.

Em entrevista à Billboard, Suga, um dos integrantes, disse: “Eu torço para que criemos um ambiente onde nós possamos pedir por ajuda e dizer que as coisas estão difíceis quando elas estão difíceis, e dizer que sentimos saudades de alguém quando sentimos a falta das pessoas”.

Para Babi Dewet, é necessário entender o contexto histórico que levou a essa situação. Segundo a autora, o pós-guerra sul-coreano é um dos principais motivos pelo tabu sobre saúde mental.

“Eles tiveram que se preocupar em reerguer o país . Criou-se a ideia de que se você reclama, você está sendo fraco. Você precisa ajudar o seu país a reerguer”.

Movimento LGBTQ+

Em uma sociedade que não reconhece legalmente o casamento homossexual, o Ídol Holland decidiu se posicionar como uma pessoa abertamente gay. O clipe de sua música “I’m Not Afraid” conta com um beijo explícito entre dois homens, o que garantiu uma classificação etária para maiores de dezenove anos para o vídeo.

Apesar disso, o jovem de 23 anos cresce cada vez mais em popularidade. Em entrevista a Teen Vogue, o artista disse “Eu quero que meus fãs amem e cuidem de si mesmo. Essa é a minha prioridade. Eu quero que eles saibam: Não há nada de errado com você, jamais deixe de ser quem você é, e foque em encontrar o que te faz feliz.”

Uma pesquisa realizada em 2017 pela Comissão Nacional de Direitos Humanos da Coreia aponta que 92% da população LGBT afirma ter ter medo de ser alvo de crimes de ódio. Um levantamento do mesmo ano da Gallup Poll, indicou que 58% dos coreanos são contra o casamento de pessoas do mesmo gênero.

“Esse mercado é muito difícil pra quem se coloca aberto dessa forma. A sociedade coreana ainda não aceita com facilidade diferença”, diz Dewet. Entretanto, os artistas estão descobrindo o poder de sua voz.

“As coisas tem mudado nos últimos anos. Há conversas sobre direitos LGBTQ, sobre feminismo, sobre o posicionamento da mulher na sociedade coreana sendo iniciado por Ídols”, continua Imenes.

As agências, responsáveis pela carreira dos Ídols, estão lentamente adotando e permitindo esse tipo de conversa. “Os Ídols são essas personas, essas pessoas inalcançáveis, que todo mundo quer imitar. Se você quer ser igual a alguém, você acaba escutando mais a fala dela”, finaliza Dewet.

Feminismo e a cultura do silenciamento

Sulli, a ex-integrante do grupo F(x), foi encontrada morta em sua casa em 2019, vítima de suicídio. Controversa, a sul-coreana falava abertamente sobre saúde mental e direitos femininos, apoiando pautas como leis sobre abortos e especialmente a campanha #NoBra, onde mulheres sul-coreanas postavam fotos protestando contra a necessidade de usar sutiãs.

O Instagram de Sulli deu início a campanha, ela postou fotos onde vestia uma camiseta sem sutiã, que rapidamente viraram alvo de uma campanha de ódio nas redes sociais. O machismo na Coreia não vem de hoje.

Segundo levantamento do Fundo Monetário Internacional, a diferença entre os salários para homens e mulheres na Coreia do Sul chega a 37 pontos percentuais, sendo o país com o índice mais alto de desigualdade registrado no relatório.

Em resposta às críticas, ela afirmou em uma entrevista ao canal de TV coreano JTBC: “Quando eu postei as fotos sem sutiã houveram tantas reações diferentes. Eu poderia ter ficado apavorada e me escondido, mas eu não o fiz. Queria que o preconceito das pessoas desaparecesse. Desejo que elas olhem para mim e pensem: ‘Bem, alguém como ela existe!’, aceitando a diferença”.

O termo “feminista” parece ser uma maldição para carreiras de mulheres na Coreia do Sul e o menor exemplo de “girl power” pode ter um custo gigantesco.

É o que indica a reportagem da Billboard, que cita o caso de Naeun, da Apink e de Irene, da Red Velvet, como exemplos da cultura do silenciamento que marca ao país.

Nauen foi “flagrada” usando uma capinha de celular com os dizeres “Girls can do anything” enquanto Irene foi “pega” lendo “Kim Ji Young, Born 1982”, um bestseller feminista.

Isso foi suficiente para um movimento intenso de represália por parte de fãs coreanos conservadores, que chegaram a queimar fotos de Irene em protesto.

A popularização do gênero no exterior causa alguns choques culturais entre fãs coreanos e fãs ocidentais, especialmente quando falamos de posicionamentos políticos e polêmicas.

“Algumas ações ou falas viram polêmica entre a audiência sul-coreana, mas não no ocidente. O contrário também acontece”, afirma Imenes. Para a autora, há uma diferença cultural de percepção sobre o que é certo e o que é errado.

As diferenças culturais são acentuadas quando se debate a toxicidade da indústria musical sul-coreana. É comum ler manchetes de jornais apontando os abusos e as problemáticas do K-pop, mas para as autoras, a toxicidade não é exclusiva desse mercado.

“Uma indústria de entretenimento onde existem pressões estéticas, pressões comportamentais, onde os artistas não são vistos como ser humanos. Isso existe na Coreia, mas também em Hollywood, na Europa e na América Latina”, relata Imenes.

“Nós só não podemos cair em um discurso preconceituoso e xenofóbico”, alerta Érica Imenes, indicando que o problema dessa indústria abusiva é muito maior do que a fronteira da Coreia do Sul.

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