A história afro-americana contada pela comida — Gama Revista
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A história afro-americana contada pela comida

Nova série ‘High on the Hog’, da Netflix, usa da gastronomia para resgatar cultura e história apagadas por escravidão e violência

Isabelle Moreira Lima 26 de Maio de 2021
Divulgação/Netflix

A comida conta histórias, diz um dos clichês mais batidos desta era de celebração da gastronomia. De tão desgastado, parece esvaziado de sentido. Mas já imaginou quando a comida é um dos únicos elementos culturais capaz de contar uma história de opressão, violência e escravidão, com muitos capítulos omitidos pelo poder e perdidos pelo tempo? Na saga dos afrodescendentes norte-americanos, desde a viagem do continente africano até os Estados Unidos, a comida tem se mostrado algo semelhante às peças de quebra-cabeças que passamos horas para encontrar e que, quando aparecem, trazem iluminação.

A nova série da Netflix, “High on the Hog”, que estreia nesta quarta-feira (26), um ano e um dia após a morte de George Floyd, faz esse uso da culinária: ela é o guia para se contar uma história perdida, ocultada pelo poder vigente em cada época, desde o século 16, e de mostrar como toda restrição e violência virou política. Baseado no livro de mesmo nome de Jessica B. Harris, conta em quatro capítulos como as influências africanas viajaram de Benim, na África ocidental, ao sudeste norte-americano, na Carolina do Sul; se transformam com influências francesas chegando à Filadelfia; virando o churrasco do Texas; e mantendo suas raízes em comunidades locais do país inteiro, influenciando a gastronomia e até a confeitaria contemporânea.

Se você está pensando na série clássica de viagem e comida, passeios pela cidade, encontro com locais, diversão e curtição, esqueça

Se você está pensando na série clássica de viagem e comida, passeios pela cidade, encontro com locais, diversão e curtição, esqueça. Apesar de usar da estrutura clássica, o que se tem é quase um trabalho de arqueologia, com um apresentador tão tímido quanto humano, ideal para arrancar desabafos e lágrimas dos entrevistados. Sim, as lágrimas estão em todos os episódios e vêm de muitos lugares, até mesmo de Stephen Satterfield, o chef e sommelier convertido em apresentador. Dele, elas brotam no momento mais forte da série, quando visita com Dr. J., como chama a historiadora Jessica B. Harris, um memorial em homenagem às pessoas escravizadas que partiram de Benim. Ele chora no ombro dela e diz que está feliz de finalmente conseguir trazê-los de volta ao lar.

É melhor contar sua história rápido

Em conversa com a Gama, Jessica diz que essa é uma história que tem que ser bem contada para que não se repita. Ela cita um trecho da música Jesus Children of America, de Stevie Wonder, “You better tell your story fast because if you lie it will come to pass”, algo como “é melhor você contar sua história rápido porque se demorar ela pode acontecer novamente”.

Essa série foi produzida na hora certa, quando as pessoas estão prontas para começar a ouvir

“Essa série foi produzida na hora certa, quando as pessoas estão interessadas e abertas. Em outros momentos, diriam ‘e daí?’ Agora estão prontas para começar a ouvir”, afirma ela, que está no primeiro episódio como uma espécie de anfitriã de Satterfield no Benim. Os dois passeiam pelos mercados, conhecem os ingredientes típicos da culinária local — alguns muito conhecidos por aqui –, vão a restaurantes e conhecem preparos tradicionais e contemporâneos e terminam numa mesa com um banquete de mais de 30 pratos pré-escravidão, que, segundo Satterfield, é o ponto alto gastronômico da série. Neste momento, o espectador brasileiro mais atento vai reconhecer alguns pratos e perceber muita influência da comida baiana de santo, bem como da caipira, com um ancestral talvez nem tão distante assim do cuscus paulista.

O apresentador Stephen Satterfield, de ‘High on the Hog’, come churrasco no Texas

A evolução de um cardápio

No segundo capítulo, chegando aos Estados Unidos, conhecemos a história do arroz dourado da Carolina do Sul, cuja técnica de plantio e preparo era dominada pelos africanos escravizados; conhecemos a comunidade Gullah Greechee, que mantém as tradições de preparo com frutos do mar, arroz e quiabo, entre outros; e vemos, finalmente, o porco do título preparado à moda sulista em um churrasco de fogo de chão por uma noite inteira. “High on the Hog” se refere às partes altas do animal, que eram servidas aos donos dos escravos enquanto estes comiam os miúdos e as partes baixas. É também uma expressão usada para se dizer que se está bem na vida, com dinheiro, o nosso “por cima da carne seca”.

Cenas da série ‘High on the Hog’, que estreia nesta quarta (26) na Netflix

Já o terceiro episódio aprendemos mais sobre os chefs fundadores dos EUA, Hercules Posey e James Hemmings, escravos de George Washington e Thomas Jefferson, que levaram elementos da cozinha francesa à norte-americana e criaram receitas tão importantes para a cultura ocidental quanto o Mac and Cheese. No episódio, assistimos ao preparo comme il faut, com a massa cozida no leite em panela de ferro e lareira e preparada com montes de queijo ralado e fatias de manteiga, aparentemente, nada pode ser mais cremoso.

Os caubóis negros do Texas

Por fim, “High on the Hog” mostra a influência africana no Texas, uma jovem e premiada confeiteira que usa elementos históricos da diáspora em suas criações (o red velvet cake é feito com beterraba e maple syrup), o churrasco texano preparado até pelas igrejas locais, e uma comunidade de caubóis descendentes de escravos, um dos pontos altos da série citada pelo apresentador a Gama.

Nossas histórias foram retidas porque a História foi escrita por quem tem poder. Quem podia publicar no começo do século? O que foi publicado?

“Foi ao conhecê-los que percebi o poder da influência negra na cultura norte-americana. Um em cada cinco caubóis americanos era negro e isso não é falado. Nossas histórias foram retidas porque a História foi escrita por quem tem poder. Quem podia publicar no começo do século? O que foi publicado? Agora, estamos em um momento em que a informação viaja livremente e sabemos que o quiabo foi introduzido na alimentação dos americanos pelas pessoas escravizadas, que o Mac and Cheese é uma receita criada por um escravo”, afirma Satterfield. Para ele, era importante que a série fosse também política. “Havia um desejo de não diluir ou açucarar a história. Queríamos que fosse algo muito real, era um compromisso nosso pegar a estrutura conhecida das séries de viagem mas entrecortá-la por momentos de autenticidade genuína e conflito”, conta Satterfield.

Comida e racismo

O caso do Mac and Cheese é a mais exemplar de como, assim como as pessoas, a comida também pode ser alvo de racismo. No caso dessa receita, pelo apagamento de suas origens, uma das formas mais comuns, de acordo com Jessica B. Harris. Satterfield vai além: “O racismo contra a comida é manifestado de muitas maneiras. O jeito como os escravizados chegaram aos EUA teve a ver com a comida, o motivo foi a sua sabedoria de agricultura. Essa história fundacional é de exploração, trabalhamos a terra contra a nossa vontade e sem que fossemos pagos. Hoje há a questão do acesso à comida, sabemos que temos mais do que precisamos e ainda assim há fome. Espero que a série mostre a história e faça com que pensemos mais criticamente sobre comida”.

Dr. J. e o Brasil

Além de ter escrito “High on the Hog”, a historiadora Jessica B. Harris escreveu um livro de receitas brasileiras nos anos 1990. Ela tem longa relação com o Brasil, é iniciada no candomblé no tradicional terreiro Casa Branca, em Salvador, na Bahia. Segundo ela, é possível traçar muitos paralelos da influência africana entre Estados Unidos e Brasil, a começar pela geografia. “Se você olhar no mapa, a maioria dos escravizados estavam no sudeste dos Estados Unidos e no nordeste do Brasil, quase como um reflexo do espelho. O Brasil tinha muita cana-de-açúcar, foi um dos lugares que desenvolveu as plantations de cana-de-açúcar [nos modelos do que aconteceu com o arroz nos EUA]. Com isso, você encontra afinidades com o Caribe, com a Louisiana”, afirma.

Segundo ela, as maiores diferenças estão no fato de que a colonização brasileira se baseou na religião católica e veio da Península Ibérica. “Quando Colombo saiu para navegar ‘descobriu’ este hemisfério, os mouros já estavam há sete séculos na Penínscula Ibérica. Se você vai a Alfama, em Lisboa, já está lá, é moura. Muitos dos mouros, vieram pelo norte da África. O arroz não veio da Pérsia, mas da África, que tem sua própria forma de cultivo. E aí, seguimos para o outro lado do Atlantico, com novas influências da África; é muita história”, diz a Gama, com a notícia de que tem novo livro sobre o Brasil nos planos.

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