Eden e a aposta da Netflix em animes — Gama Revista
Divulgação / Netflix

‘Eden’ e a aposta da Netflix em animes para conquistar o mundo

Série original sobre um futuro em que a humanidade está quase extinta faz parte de estratégia da plataforma de ampliar sua oferta de animes

Daniel Vila Nova 01 de Junho de 2021

Se você, assim como inúmeras outras pessoas, também têm dificuldade na hora de escolher o que assistir na Netflix, é bem provável que durante a procura por um novo filme ou série já tenha se deparado com uma animação japonesa sendo oferecida em seu catálogo. Os animes, que costumam ser figura recorrente na lista de mais assistidos da plataforma, estão cada vez mais presentes no serviço de streaming — em 2021, 40 novos títulos serão lançados no Netflix, quase o dobro do número de estreias de animações japonesas do ano passado.

Longe de ser um erro de algoritmo, a presença cada vez maior desse tipo de conteúdo parece fazer parte de uma estratégia do canal de ampliar sua oferta de animes. De acordo com a Variety, a Netflix enxerga as animações japonesas como uma tendência global e vem buscando produzir cada vez mais conteúdo nessa área. Entre outubro de 2019 e setembro de 2020, mais de 100 milhões de lares ao redor do mundo assistiram ao menos um anime na plataforma, um aumento de 50% em comparação ao mesmo período de 2018 e 2019.

Os animes, que costumam figurar na lista de mais assistidos do Netflix, estão cada vez mais presentes — em 2021, 40 novos títulos serão lançados na plataforma

O plano, que vem ganhando cada vez mais força, já é desenhado há alguns anos. Em 2017, o serviço de streaming já apostava em animações japonesas como forma de expandir sua audiência. Ao site Omelete, o chefe da Netflix no Japão — Greg Peters — afirmou: “Queremos levar a experiência de assistir a um anime para outro nível, ao mesmo tempo que aumentamos o número de pessoas que terão acesso ao nosso serviço”. De acordo com Peters, a ideia da Netflix era agradar tanto fãs de animes quanto pessoas que não têm o costume de assistir esse tipo de produção.

Além de adquirir o direito de séries clássicas como “Evangelion” (1995), “Fullmetal Alchemist: Brotherhood” (2009), “Death Note” (2006), “Naruto” (2002) e “One Piece” (1999), o serviço de streaming também aposta na produção de conteúdo original — títulos como “Devilman Crybaby” (2018), “Kakegurui” (2017), “Beastars” (2019) e “Castlevania” (2017). A mais nova produção original da Netflix é “Eden”, anime lançado no dia 27 de maio que conta a história de um futuro pós-apocalíptico onde dois robôs encontram e criam a última humana da face da Terra.

O anime Neon Genesis: Evangelion, de 1995, um dos clássicos do gênero no catálogo da Netflix

Gama conversou com o americano Justin Leach, criador e produtor de Eden, sobre o processo de criação e os temas do anime, e também bateu um papo com o brasileiro Leonardo Kitsune, produtor de conteúdo sobre animações japonesas, sobre a popularidade do gênero no Brasil e o investimento dos streamings nesse tipo de produção.

Um futuro distópico, mas colorido

Milhares de anos no futuro, a Terra é habitada por robôs inteligentes e conscientes. Essas criaturas cultivam agricultura, tem sua própria sociedade e regras e vivem em harmonia com o planeta. Alguns poucos indícios apontam para a existência prévia da humanidade, mas tal assunto é tratado pela nova sociedade como uma lenda distante e antiga. Eden conta a história de dois robôs, A37 e E92, que vivendo neste mundo encontram algo que parecia impossível: um bebê humano. Se apaixonando pela pequena garota, os dois robôs assumem a função parental e criam Sara como uma filha, escondendo-a da sociedade robótica com medo de uma represália. Ao longo dos quatro episódios, cada um com 25 minutos, vemos Sara crescer e investigar o misterioso desaparecimento da raça humana. O anime conta com um elenco de peso na dublagem americana, com nomes como Ruby Rose Turner, Rosario Dawson, David Tennant e Neil Patrick Harris.

Apesar de ser pós-apocalíptico, a animação apresenta tons pastéis e personagens fofos e carismáticos — uma mistura de “Wall-e” (2008) com o Estúdio Ghibli, afirma Justin Leach. Leach, que trabalhou por muitos anos como animador na Blue Sky Studios (estúdio responsável por franquias como “Era do Gelo” e “Rio”), teve a ideia de Eden há mais de duas décadas. No começo, ele queria contar a história de três homens e um bebê, navegando pela inabilidade dos três em criar uma criança. À medida que o tempo foi passando, e que o próprio Leach se tornou pai, a narrativa da descoberta da paternidade começou a atrair mais sua atenção. Some a isso ao cenário de ficção científica e Eden como conhecemos hoje nasceu. “A preocupação com o meio ambiente e com o aquecimento global só cresciam. Pensei que seria interessante ver como seria o mundo após a extinção dos humanos. Como o planeta ficaria? E como nossos restos pareceriam?”

Cena do anime Eden, produzido pela Netflix

O produtor executivo e criador da série queria um mundo perfeito construído por robôs e não destruído pela humanidade. “A animação tem um tom bem colorido e amigável, que definitivamente não parece com o fim do mundo.” Explorando dilemas clássicos da ficção científica que falam sobre inteligência artificial, a relação entre robôs e humanos é um dos temas centrais de Eden. “Nós somos máquinas orgânicas e, assim como também nos questionamos o que estamos fazendo na Terra, quis explorar o que robôs sentiriam e pensariam ao atingir a auto consciência.”

A37 e E92 encontram a bebê Sara em uma plantação de maçãs e, a partir daí, tentam descobrir a melhor forma de criar uma criança sem chamar a atenção dos outros robôs. Leach conta que se inspirou nas próprias experiências enquanto pai, onde você está constantemente tentando resolver cada vez mais problemas e descobrir o que há de errado. “Me lembro do sentimento ao sair do hospital: aqui estou, tenho essa pessoa para alimentar e criar pelo resto da minha vida e não tenho a menor ideia do que fazer.” Além desse sentimento, há também um momento bem pessoal da vida de Leach no anime: uma rima infantil cantada para Sara ao decorrer da animação é inspirada em uma cantiga que Leach cantava para o seu filho quando o colocava para dormir. Para o produtor, esse é um dos seus momentos favoritos da animação.

Além das relações humanas e robóticas, a preocupação com o meio ambiente também é central na trama de Eden. O show começou a ser produzido antes da pandemia, mas há momentos na história em que o uso de máscaras e um vírus mortal são explorados. “É bizarro. Fizemos essas cenas antes da pandemia, mas se tornaram atuais. Acredito que, de maneira intuitiva, todos percebemos que o meio ambiente está mudando e que se não prestarmos atenção para isso agora, talvez seja tarde demais. Quis mostrar que é algo importante e que pode nos destruir, caso não tenhamos o cuidado necessário”, diz Leach.

Versão brasileira Álamo

Ainda de acordo com a Netflix, o Brasil é um dos países que mais consome animes no mundo. O país, que sedia o maior evento de anime das Américas, o Anime Friends, tem uma longa história com animações japonesas. Leonardo Kitsune, ex-apresentador e redator do Funimation TV (programa de TV que falava sobre animes e mangás), aponta para três fatores que tornam a animação japonesa tão popular no Brasil: A TV aberta da década de 90 e dos anos 2000, os fansubs e, atualmente, os serviços de streaming.

“Muitas pessoas tiveram o primeiro contato com o anime pela TV aberta, em programas infantis. “Cavaleiros do Zodíaco” (1986) na Manchete, “Dragon Ball Z” (1989) na Globo e “Naruto” no SBT são lembrados até hoje e, mesmo anos depois de suas exibições, ainda são muito populares no Brasil”, afirma Kitsune. Figurinhas carimbadas nos programas infantis daquela época, os animes marcaram a infância e adolescência de muitos brasileiros. Kitsune, que chegou a atuar como editor em uma grande editora brasileira de mangás, afirma que propriedades como “Dragon Ball” e “Naruto”, populares na TV aberta, são apostas certeiras de alto número de vendas até hoje.

Muitas pessoas tiveram o primeiro contato com o anime pela TV aberta. ‘Cavaleiros do Zodíaco’ na Manchete, ‘Dragon Ball Z’ na Globo e ‘Naruto’ no SBT

Já os fansubs, diz Kitsune, eram voltados para um público mais nichado, mas ainda assim tem a sua relevância. Junção das palavras “fan” (fã em português) e “subtitled ” (legendado em português), os fansubs eram traduções de animações japonesas feitas por fãs e disponibilizadas na internet. Realizados em comunidades onlines de forma voluntária, os fansubs não são atividade exclusiva dos animes, mas foram cruciais para a popularização do gênero no país. “Por muito tempo, foram a única forma de acesso para animes mais alternativos, que não eram exibidos no Brasil.” Segundo Kitsune, era comum ir a convenções de animes e ver cosplays e produtos referentes a animes que sequer haviam sido lançados no Brasil, tamanha a força dos fansubs.

O anime Dragonball Z exibido na Globo, que popularizou as animações japonesas no Brasil

Hoje, entretanto, o panorama mudou. Se os programas infantis são cada vez mais raros na grade da TV brasileira, os serviços de streaming chegam como um possível substituto para os fãs de anime. Além da Netflix, serviços como “Crunchyroll” e “Funimation” dedicam todo seu catálogo a animações japonesas e lançam conteúdos legendados para diversos países, incluindo o Brasil. Para Kitsune, o fato de haver serviços exclusivos que operam somente com animes é um forte indicador de que há um público que quer consumir esse conteúdo. “Quando você abre a página da Netflix, os animes estão no topo. Você abre o menu e a plataforma te indica ‘The Circle’, ‘The Witcher’ e ‘Yasuke’, por exemplo. As animações japonesas não são mais tratadas como algo menor ou como conteúdo alternativo, elas se tornaram algo bem mais popular e aceito.”

Apesar da crescente presença do gênero nas plataformas de streaming, Kitsune lembra que o acesso a internet no Brasil está bem longe de ser igualitário. “A popularização do anime também passa muito por sua democratização e não há nada mais justo do que a exibição desse conteúdo em TV Aberta, como era antigamente. Eu acredito que o público existe, mas é necessário um trabalho das emissoras para que isso aconteça.”

O futuro do anime

Nos Estados Unidos, mangás estão ultrapassando o número de vendas de quadrinhos de super-heróis. A popularidade é refletida nos números: “Demon Slayer” (2016), uma das mais populares sagas dos últimos anos, vendeu mais de 82 milhões de edições entre 2019 e 2020. Partes de um mesmo ecossistema, onde mangás populares são adaptados como animação, o crescimento dos animes é cada vez mais notável.

Para Justin Leach, a popularidade das animações japonesas está relacionada à diversidade de temas que elas abordam. “Animes são mais como uma mídia e não como um gênero, ele pode incluir tudo, qualquer tipo de história. No ocidente, a animação costuma ser encarada como algo infantil, mas é possível explorar temas mais adultos e histórias mais complexas no anime.” Leach acredita que as pessoas se apaixonam por animes devido a variedade de histórias que existem nesse meio.

O mercado japonês já foi muito fechado para estrangeiros. Mas com a chegada das novas plataformas, as coisas começaram a mudar

Já Kitsune, o brasileiro especialista no tema, entende que o crescimento na demanda de animes fora do Japão alterou a lógica da indústria de animações japonesas. “O mercado japonês, durante um bom tempo, foi muito fechado para estrangeiros. Os animes eram produzidos somente com o japonês em mente, mas com a chegada das novas plataformas, as coisas começaram a mudar. Há uma nova fonte de renda gigantesca para essa indústria do outro lado do mundo.” Se por um lado isso significa uma maior variedade nas produções, Kitsune teme que o mercado sature em alguns anos. “Nunca foram produzidos tantos animes quanto hoje e essa é uma tendência que não tende a parar. Com o tempo, é bem possível que cheguemos a um limite.” Além da saturação do mercado, outro grande problema que a indústria enfrenta é a precarização do trabalho dos animadores. Muitos recebem salários pequenos, que sequer se igualam ao salário mínimo japonês.

Kitsune acredita que, cada vez mais, a ideia do anime como uma animação feita no japão será diluída. “Com a abertura do mercado japonês, essa definição vai ficando cada vez mais difícil. Os estúdios já empregam animadores de outros países e é comum ver produções em que parte do time é japonesa, mas a outra parte é estrangeira.” A mudança, diz Kitsune, talvez não seja aceita pelos fãs mais apaixonados, mas à medida que os animes vão ganhando mais popularidade, pouco vai importar para o grande público se o desenho que eles gostam foi feito 100% no Japão.

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