Entrevista com Itamar Vieira Junior sobre "Torto Arado" — Gama Revista
Câmara Municipal da Póvoa de Varzim

‘A desigualdade, seja do passado ou do presente, passa pela terra’

Itamar Vieira Junior, autor de ‘Torto Arado’, detalha a construção da obra e aborda temas como ancestralidade, religião e desigualdade

Daniel Vila Nova 10 de Dezembro de 2020

Ganhador do prêmio Jabuti na categoria Romance Literário, “Torto Arado” (Todavia, 2019), de Itamar Vieira Junior, é um dos livros mais falados do ano. O romance, lançado pela editora Todavia em 2019, conta a história de duas irmãs, o trágico acidente que as conecta e a luta que elas travam pelo direito à terra.

Inspirado em grandes obras brasileiras ambientadas no Nordeste como “Vidas Secas”, “O Quinze”, “Terras do Sem-Fim”, “Menino de Engenho” e “São Bernardo”, o livro é situado na fazenda Água Negra, localizada na Chapada da Diamantina. Ao longo de cerca de 40 anos, acompanhamos a vida de Bibiana e Belonísia e daqueles que vivem na fazenda.

Fortemente baseado na oralidade, “Torto Arado” tem uma de suas protagonistas muda. Nas primeiras páginas do livro, uma brincadeira com um místico punhal rasga a língua de uma das irmãs e entrelaça o destino de Bibiana e Belonísia — uma se torna a voz da outra. Os diálogos escassos têm propósito — até o final da primeira parte, Itamar mantém o mistério sobre qual das irmãs perdeu a língua.

O acidente que define a vida das garotas é o ponto de partida de uma trama que fala sobre racismo, ancestralidade, religião e, acima de tudo, direito à terra. Na fazenda, a família das irmãs vive em situação análoga à escravidão. Cuidam da terra e produzem alimentos, mas não têm direito a nada dali.

A história não foi baseada em ninguém que Itamar conhece, mas a situação vivida pelos personagens de “Torto Arado” é real. “É comum encontrar nas fazendas do Nordeste gerações de famílias inteiras vivendo em uma terra à qual não têm direito”, afirma o escritor.

“Os ancestrais dessas pessoas foram raptados e sequestrados de seus lugares de origem, do Benin a Angola. Inúmeras etnias vieram para cá, mas elas não tiveram qualquer tipo de autonomia, antes ou depois da escravidão. Essas pessoas viveram como errantes, tal qual os personagens de ‘Torto Arado’, indo de fazenda em fazenda pedindo morada. Ali se criou uma relação de servidão que perdura até os dias de hoje.”

Em entrevista a Gama, o escritor baiano de 41 anos contou os detalhes da concepção de seu romance e falou sobre os temas que compõem “Torto Arado”.

Raízes

“Eu e minha família somos bestas erradas. Não por nós, mas por meus avós que saíram do campo muito cedo e vieram viver na cidade. Talvez, se eles não tivessem saído, eu fosse um homem da terra.”

As memórias da terra sempre povoaram o imaginário da família Vieira Junior. Itamar, ainda menino, se apaixonou pelas histórias que os mais velhos contavam sobre suas origens e raízes. Não demorou muito e a paixão pela terra logo encontrou o outro grande amor de Itamar, a escrita.

“Se você me perguntar qual foi a primeira profissão que pensei que teria, eu diria escritor. Porque desde que eu aprendi a ler e a escrever, eu escrevo”, confessa o autor.

Aos 11 anos, o pai o presenteou com uma máquina de escrever. Foi com a Olivetti Lettera 82 dada como presente de natal que, aos 16 anos, Itamar começou “Torto Arado”. Oitenta páginas foram escritas, mas faltou maturidade para o adolescente finalizar a obra. Hoje, mais de 20 anos depois, ele celebra a imaturidade do passado.

Se você me perguntar qual foi a primeira profissão que pensei que teria, eu diria escritor. Porque desde que eu aprendi a ler e a escrever, eu escrevo

“Se naquela época eu tivesse concluído o livro, talvez não teria tido vontade de retomar o romance anos depois. Pude retomá-lo a partir de outra perspectiva mais amadurecida. Durante esse espaço de tempo, estudei muita literatura, li diversos autores que de alguma forma me influenciaram e pude conhecer o campo.”

O tempo entre a primeira e a segunda versão do romance foi ocupado, entre outras coisas, com a carreira acadêmica. De família simples e pragmática, Itamar optou por cursar geografia ao invés de seguir a incerta carreira de escritor. Durante 15 anos, foi servidor público do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e lá entrou em contato com quilombolas, indígenas, trabalhadores acampados, assentados e comunidades ribeirinhas. O convívio com essas comunidades fez crescer a vontade de retomar o livro da juventude. Munido de uma extensa pesquisa sobre a região, Itamar afirma que o privilégio de trabalhar com essas pessoas lhe permitiu dar alma a história que queria contar.

“Torto Arado”, seu primeiro romance, faz parte de um projeto maior que busca explorar a relação do homem com a terra. O autor garante que o livro não receberá uma continuação direta, mas diz que deseja aprofundar seu olhar literário para o tema versado.

“Quando eu penso no meu projeto literário, tenho a plena convicção de que não escreverei apenas sobre isso. Mas concebi ‘Torto Arado’ como o primeiro tomo de um tríptico de narrativas. Quero falar sobre isso, é um assunto central para nossa sociedade. Muita da nossa desigualdade, seja do passado ou do presente, passa pela terra.”

A terra do outro

A desigualdade citada por Itamar aparece a todo o momento no romance. Proibidos de construírem casas de alvenaria, que garantiriam uma moradia permanente e bem estruturada, as famílias de Água Negra têm de se contentar com casas de barro. Esse é só um dos diversos exemplos da luta por moradia.

Ao decorrer da trama, começa a ficar claro para os personagens que o direito à terra está intrinsecamente ligado a outra questão que os assola: o racismo. A palavra “quilombolas” só aparece na segunda parte do livro, mas discussões sobre o racismo estão presentes em todas as páginas.

Após o incidente com o punhal, a família de Bibiana e Belonísia corre para o hospital na cidade grande. Ali, pela primeira vez, se encontram em um ambiente majoritariamente branco. “Foi o primeiro lugar em que vi mais gente branca que preta”, conta uma das meninas no livro.

Na literatura, é comum que marcadores raciais sempre se referiam a pessoas racializadas. Afinal, o branco é quase sempre o status-quo. Mas “Torto Arado” faz diferente e direciona o primeiro marcador racial do livro ao branco.

É um livro em que o protagonismo negro é muito forte. Quase todos os personagens são negros e os personagens brancos, quando aparecem, são secundários

Para o autor, como o romance é narrado a partir da centralidade de vidas negras, é sintomático que esse marcador seja inverso. “É um livro em que o protagonismo negro é muito forte. Quase todos os personagens são negros e os personagens brancos, quando aparecem, são secundários.”

A descoberta do outro instiga as irmãs, que passam a questionar ao longo da vida o papel da cor de sua pele. “Enquanto eles estavam entre eles, o racismo não era uma questão que precisava ser refletida. Era como se fosse um paraíso, um paraíso onde as pessoas não se sentiam diferentes por sua cor ou por sua origem.”

O trecho, entretanto, não reflete só a vida das irmãs. Itamar foi confrontado inúmeras vezes com essa realidade. “Existem lugares que não são frequentados por negros. Talvez isso esteja mudando, mas eu já tenho 40 anos e sempre houve espaços que eram inacessíveis para mim e para muitos outros.”

“O que Bibiana narra no livro é um reflexo vivido não só por mim, mas por diversos outros homens e mulheres negras que vi dizerem a mesma coisa.”

Mas a terra dada, não se abre a boca

A desigualdade, entretanto, não acaba no racismo. Para Itamar, quando falamos do campo, falamos de um Brasil que continua mergulhado em um passado patriarcal, machista e por isso mesmo repleto de desigualdade.

“Não quis narrar essa história só pela centralidade das vidas negras, mas pela centralidade da mulher negra. Eu precisava que a narrativa se deslocasse para o lugar mais vulnerável dessa comunidade.”

Ao longo da trama, uma das irmãs percebe que não é dona de nada. Ao viver em Água Negra, não é dona do próprio chão. Ao casar com seu marido, não é dona do próprio corpo. E ao perder a língua, não é dona da própria voz. Enquanto mulher negra, a irmã sofre duas vezes. Enfrenta o racismo que atravessa a sociedade e, entre seus pares, enfrenta o machismo que também é estrutural.

A força da irmã, segundo Itamar, é comparável à força da própria terra. “Aos poucos, ela vai resgatando sua humanidade. Resgata o domínio do seu corpo, se engaja na luta pelos direitos à terra e compreende que a impossibilidade de falar não lhe tirou a conexão com os outros e com a natureza.”

Bibiana e Belonísia, entretanto, não são as únicas que conseguem resgatar a sua humanidade em meio à servidão em que se encontram. À medida que a população de Água Negra passa a entender a situação de subalternidade em que estão, começa a se organizar por seus direitos.

O acesso ao conhecimento mudou a minha relação com o mundo. Hoje, eu não falo de um lugar de vulnerabilidade. A centralidade que a educação teve na minha vida me permitiu chegar a lugares que meus antepassados não chegaram

Zeca Chapéu Grande, líder espiritual da região e pai das irmãs, luta pela construção de uma escola na fazenda. Bibiana, apaixonada pela escola, sonha em se tornar professora. Severo, marido de Bibiana, se aproxima do movimento sindical e educa a população de Água Negra. Com o tempo, a leitura e o estudo passam a ser utilizados como ferramentas que podem romper a exploração vigente.

Primeiro da família a cursar o ensino superior, a educação enquanto instrumento de emancipação também foi fundamental para Itamar. “O acesso ao conhecimento mudou a minha relação com o mundo. Hoje, eu não falo de um lugar de vulnerabilidade. Tenho plena compreensão sobre os privilégios dos outros e sobre os privilégios que porventura eu também tenha. A centralidade que a educação teve na minha vida me permitiu chegar a lugares que meus antepassados não chegaram. E não cheguei como subalterno, mas sim com a capacidade e com a possibilidade de debater e discutir de igual para igual.”

Se o conhecimento se tornou uma das ferramentas essenciais na fazenda de Água Negra, a importância da narrativa também é celebrada no romance. Com o passar do tempo, Belonísia lamenta não ter registrado sua história para a posterioridade. Segundo ela, tais histórias poderiam servir de motivação para que o seu povo mudasse de vida.

Nós lemos porque precisamos saber a história dos outros para entender nossas próprias histórias. É um contínuo que nunca termina

Durante sua pesquisa, Itamar encontrou inúmeras outras pessoas com o mesmo sentimento. “Diversas vezes ouvi pessoas me falarem que, se soubessem que o que estavam falando era importante, teriam anotado tudo.” O escritor acompanhou diversos trabalhadores que tinham o costume de escrever e guardar seus cadernos. “Eles escrevem, mas muitas vezes não sabem o que fazer com aquilo. Algo similar ao que aconteceu com a Carolina Maria de Jesus. A fala de Belonísia espelha isso, a vontade desses trabalhadores de contarem as próprias histórias.”

“O desejo de contar história não é meu ou seu, é de todos. É um atributo humano. Nós lemos porque precisamos saber a história dos outros para entender nossas próprias histórias. É um contínuo que nunca termina.”

O Jarê

As pesquisas de Itamar também inspiraram o autor a incorporar uma das ricas tradições da Chapada da Diamantina — o Jarê. A religião, exclusiva da localidade, mistura credos e crenças africanas, católicas e xamânicas. Ao longo do romance, Zeca Chapéu Grande incorpora Encantados, entidades sobrenaturais que regem os espíritos dos homens.

“O Jarê é algo muito encantador para quem está de fora. Há algo de muito especial ali, mas a minha curiosidade não tem relação com a mística da crença. O que me mobilizou a pesquisar e conhecer o Jarê foi a solidariedade horizontal que atravessa toda aquela comunidade por meio da religião.”

O curador ou curadora, papel exercido por Zeca Chapéu Grande no livro, cuida do corpo e dos espíritos das pessoas em uma região onde não há médicos. “É muito semelhante aos xamãs indígenas, aos babalaôs e yalorixás das religiões de matrizes africanas e até mesmo à figura do padre no cristianismo e seus sacramentos e ritos.”

A centralidade que a religião exerce na vida das pessoas da Chapada da Diamantina comoveu Itamar, que, quando retomou ao romance, soube que precisava incluir a religião. “É incrível que algo que não é materialmente palpável tinha tamanha capacidade de organizar um grupo e ensejar a solidariedade entre seus membros.”

Em “Torto Arado”, o Jarê não só é presente na narrativa como narra a própria história. Na terceira e última parte do livro, quem assume as rédeas é uma antiga Encantada chamada Santa Rita Pescadeira.

Com a mística e a magia andando de maneira tão clara sob a terra de Água Negra, as comparações ao realismo mágico foram inevitáveis. Não foram poucas as resenhas e críticas que classificaram o romance no subgênero latino-americano. O livro, inclusive, é o primeiro mais vendido na categoria “Realismo Mágico” da Amazon. O autor, entretanto, se sente pequeno demais para opinar sobre o assunto.

“Enquanto eu escrevia o romance, não imaginava que estava escrevendo algo tributário da tradição do Realismo Mágico. A minha preocupação era contar uma história onde o mundo narrado fosse a partir da perspectiva das personagens. ”

O autor entende que, para aquelas pessoas, uma narrativa que tenha um ser sobrenatural pleno de vida, capaz de narrar parte da história, é plenamente concebível. “Para mim, para meu editor ou para o leitor pode ser mágico. Mas para eles não é, é algo que faz parte do cotidiano.”

Terra à terra, cinza à cinza, pó ao pó

A escolha de Santa Rita Pescadeira para narrar a terceira parte do romance não foi aleatória. Partiu de uma experiência real, vivida por Itamar enquanto pesquisava sua tese. “Santa Rita Pescadeira é uma Encantada que existe no Jarê. Mas durante a minha pesquisa não encontrei nenhuma informação sobre ela, apenas que existia. Entrevistei muita gente, inúmeras famílias e elas já não conheciam a Encantada.”

A pesquisa não era focada em Santa Rita, mas Itamar encontrava espaço entre uma pergunta e outra para questionar as pessoas sobre a Encantada esquecida. “Os poucos que haviam visto ela dançar ou alguém incorporá-la não lembravam de muita coisa. Não lembravam como ela dançava ou de como era a música. Se eu perguntava quem a incorporava, descobria que a pessoa já tinha morrido.”

O esquecimento de tradição tão importante no passado marcou o autor. Ali, ele percebeu que as tradições se modificam e que algo importante no passado não necessariamente será importante no futuro. “Foi um confronto meu com o próprio campo, não deixa de ter algo nostálgico e melancólico quando as tradições se perdem.”

O processo, que Itamar considera inevitável, foi encarnado no livro. Para o autor, o romance deve se aproximar da vida e ser um retrato completo de nosso tempo. “Não faria sentido que essa tradição permanecesse ao final do romance se eu vejo que ela está sendo alterada e se modificando no próprio lugar onde ela existe.”

Com a morte de Zeca, a tradição do Jarê em Água Negra se enfraquece. As irmãs não aceitam continuar o fardo espiritual do pai, pois já não vivem mais naquele mundo.

“A última personagem chega para dizer isso, para lembrar das tradições que estão sendo esquecidas. Trago um certo inconformismo, dou voz ao que está sendo esquecido para narrar a história. E é uma voz poderosa, a única capaz de fazer uma ponte entre o presente e o passado ancestral que o povo de Água Negra carrega nas costas.”

Produto

  • Torto arado
  • Itamar Vieira Junior
  • Editoria Todavia
  • 264 páginas

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