Coluna da Maria Ribeiro: Vai passar — Gama Revista
COLUNA

Maria Ribeiro

Vai passar

Porque o sol entra pelas frestas. O sol e o amor. Por mais tristes que tenham sido os últimos 15 meses, dificilmente você os atravessou sem uma ou outra alegria

31 de Maio de 2021

Vai passar. Não sabemos quando, não sabemos como, não sabemos com que consequências. Sim, podem surgir novas cepas, a economia não vai se recuperar de uma hora pra outra, o trauma também deve nos acompanhar sabe-se lá por quanto tempo — isso sem falar nos lutos — mas uma hora vai passar.

Ok, passar talvez seja muito. 2020 e 2021 provavelmente ficarão. Mas vai ficando mais longe, menos doído, em perspectiva. De lá, da perspectiva, esses dois, ou três anos — já não duvido de mais nada — terão deixado alguma herança bonita. Aqui, em dois segundos, já me vem à cabeça uma dezena de cenas eternas: as primeiras lives da Teresa Cristina; um zoom pra conhecer os bebês da Martha*; um fim de tarde modernista em um canto de Higienópolis; o livro de poesias do André Dahmer; dois ou três paredões do BBB; os vizinhos se despedindo do corpo de Moraes Moreira; Gregório e família cantando Tom Zé no Greg News; as visitas nas janelas de casa; as cantorias italianas; a primeira mulher vacinada no Brasil; os passeios de carro como mergulhos no mar; os círculos formados no caos.

Há um único modo de viver esse rolê aqui: progressivamente. Ou seja, meio sem pensar, a la Zeca Pagodinho, um dia depois do outro

Aquele rapaz de nome difícil, o dinamarquês Kierkegaard, dizia haver um único modo de viver esse rolê aqui: progressivamente. Ou seja, meio sem pensar, a la Zeca Pagodinho, um dia depois do outro, ou, então, melhor ainda, “só por hoje”, como prega o Alcoólicos Anônimos.

Nesse momento, quando os comprovantes da vacina estiverem emoldurados ao lado da sua obra de arte preferida, e as fotos com máscaras forem apenas um bloco do rolo de câmera do seu celular — e, não, as últimas fotos — quais lembranças te farão sorrir? Que parcerias? Quais mensagens no WhatsApp?

Em 2019, em meio à situação mais triste que já presenciei na vida, de uma amiga cujo filho bebê se encontrava gravemente doente, ainda assim houve instantes para sempre, como o dia em que o pequeno Antonio aprendeu a andar, ou falou uma frase inteira. A vida às vezes pode ser um dia.

Porque o sol entra pelas frestas. O sol e o amor. Por mais tristes que tenham sido os últimos 15 meses, dificilmente você os atravessou sem uma ou outra alegria.

Sábado eu fui pra rua e chorei que nem criança. Em um dia que era pra ser de protestos, eu estava extremamente grata e feliz

Sábado eu fui pra rua e chorei que nem criança. Escrevi cartazes como se fosse a primeira vez. Me emocionei com os pilots, com as lembranças de 2013, de 2018, de agora. Paulo Gustavo pra sempre, dizia um. Viva Paulo Mendes da Rocha, dizia outro. A bossa nova é foda, pensei em escrever. Em meio a um dia que era pra ser de protestos, eu estava extremamente grata e feliz.

Por estar viva, por haver ruas e calcadas, bêbados e ambulantes; por haver sol, nuvens, buzinas, viadutos, futuro, segundas chances.

Minha amiga cujo filho pequeno morreu em 2019 está grávida de outro menino. Joaquim vai nascer nos próximos dias. Desculpem a minha alegria, leitores. Hoje tá sol aqui dentro.

*Martha Nowill, atriz que teve gêmeos neste ano

Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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