Coluna do Marcello Dantas - Trauma Essencial - Gama Revista
COLUNA

Marcello Dantas

Trauma essencial

Vivemos algo tão inédito que nos faltam mecanismos de compreensão. A arte é uma ferramenta para ajudar a entender afetos e pensamentos

24 de Junho de 2020

Uma pesquisa levantada na semana passada pelo jornal Sunday Times (The Straits Times), de Singapura, e republicada no mundo todo, colocou os artistas como a profissão menos essencial diante dos desafios da pandemia. Depois dos artistas, vieram os profissionais de telemarketing e os gerentes de redes sociais. A pesquisa foi rechaçada por todos os lados. Mas, apesar de discordar completamente do resultado, ela apresenta, de certa forma, uma verdade que precisamos compreender: a distância de compreensão que existe hoje entre os criadores e o seu público é algo preocupante.

De início existe uma compreensão difusa do que é ser artista. Para muitos, a imagem reclusa de um pintor em seu atelier não confere a real dimensão da prática artística e suas interligações. Para que possamos assistir a um filme ou a uma série na televisão, é preciso entender a intrincada cadeia criativa da qual a arte é feita. Alguém escreveu um romance, alguém representou algo em pintura, fotografia, história em quadrinho, ou outro suporte pictórico que influenciou a escolha estética de uma paleta e estilo, um curador deu àquilo um novo sentido. Alguém compôs a música, outros atuaram, outros fizeram um poema que foi surgir num diálogo, outros souberam filmar. Todos são artistas e seu papel na formação da identidade de um povo é vital. Não se pode entender a arte como um processo isolado, mas sim como uma forma integrada de influências, antenas e percepções que captam algo que sabemos reconhecer, mas não temos meios de nos referir sem a arte.

Contudo, para uma parcela das pessoas, artistas são párias, sustentados por algum privilégio do Estado, uma visão absurdamente equivocada. Artistas são, na sua grande maioria, trabalhadores braçais que por paixão ao seu ofício se privam de muitas coisas na vida, tanto no campo material quanto no campo pessoal.

Ainda assim, de forma global (pois essa pesquisa é internacional), a sociedade considera os artistas uma profissão menos essencial. Isso revela a distância entre todos nós que pertencemos a este círculo e o cidadão comum. Um indício de que nossas práticas são, de certa forma, cifradas e pouco permeáveis à população. Se as inter-relações estão ocultas para um grande número de pessoas, precisamos melhorar a comunicação e o valor aspiracional de todas as profissões que se interligam no mundo da arte.

Nunca os sonhos foram tão importantes, ao oferecer escape ao inconsciente. A arte tem um papel fundamental, pois dá forma à fuga

A arte é a prática que mais consegue transformar o valor de uma coisa. Parte do processo de agregar valor, a arte precisa criar uma aura de exclusividade. É aí que começam os problemas, ao distanciar os criadores por detrás de uma redoma de intocabilidade, a arte cria um processo de exclusão e distanciamento, que torna o meio pouco permeável aos que não pertencem a ele. Essa redoma distancia o artista de seu público e, pior, afasta as sensibilidades que poderiam se influenciar nos dois sentidos. Ao desconectarmos das pessoas comuns, perde-se o vínculo afetivo que é o que motor da preservação de memória.

Em 1990, quando o então presidente Fernando Collor de Mello numa canetada acabou com toda a estrutura existente no país para a produção cinematográfica, ninguém saiu às ruas para bater panela para defender o cinema brasileiro, pois o vínculo popular com o cinema havia se perdido desde os grandes sucessos de bilheteria dos anos 1970. Se o mesmo governo Collor tivesse decretado o fim da telenovela, seu impeachment teria saído antes, motivado pelos milhões de telespectadores assíduos que amavam o que viam na televisão. Agora, a pandemia impediu a produção de telenovelas de forma brusca, e ninguém quis se mobilizar a respeito. O vínculo com a televisão brasileira não é mais o mesmo de 30 anos atrás.

Os artistas foram peças-chave na recondução do Brasil ao regime democrático, em 1984, com a campanha das Diretas Já. Foram pessoas como Chico Buarque, Fafá de Belém, Milton Nascimento, Fernanda Montenegro, Ferreira Gullar, entre tantos, que mobilizaram a população para definir seu próprio destino.

O que acontece no Brasil de hoje é que não temos mais o mesmo vinculo com o público que nos permitiria, por exemplo, sacudir as estruturas de poder quando o abuso acontece quase diariamente diante dos nossos olhos. E não é por que não temos uma geração jovem e politizada com a capacidade de ir às ruas, essa força existe. O que perdemos foi o reconhecimento de que a arte ilumina o caminho, nos serve de guia e que os artistas são balizadores confiáveis para nos dar o norte.

Neste momento de reclusão, tenho a certeza que os artistas, apesar da crise que enfrenta o setor cultural, agora agravada pela pandemia, estão digerindo extraordinariamente uma das matérias-primas essenciais da arte, que é o trauma. O trauma do isolamento, de vidas perdidas, de injustiças cometidas, da falta de auxílio e recursos.

A pandemia atinge de forma muito mais abrangente o imaginário do que os corpos. Nunca sonhamos tanto e de forma tão coletiva. Nunca os sonhos foram tão importantes para nos dar um escape para o inconsciente. A arte tem um papel fundamental em dar forma a essa fuga. Neste campo, ela perdura muito mais que o vírus. Em breve, só seremos capazes de caminhar no desconhecido mundo novo que se apresenta com a potência metafórica dos artistas em nos dar senhas para decifrar este próximo desafio. Não há a menor dúvida do papel fundamental que a arte tem para expurgar, curar ou tornar o trauma tangível.

A arte que está sendo feita hoje será a arte inaugural de um novo século

Vivemos algo tão inédito que ainda não temos mecanismos para decifrar. A arte é uma ferramenta para ajudar a entender afetos e pensamentos. A questão não é se alguém vai querer consumir o que foi produzido neste período no futuro. O fato é que nunca conseguiremos contar a história do nosso tempo sem entender o que fizemos quando deixamos de ser quem éramos. A arte que está sendo feita hoje será a arte inaugural de um novo século.

Os retratos do isolamento. A separação das famílias e amigos. Os milhões de nudes que o isolamento tem produzido são uma história à parte na representação da sexualidade em reclusão. A expressão do amor como uma medida de distância entre corpos. O vazio inédito das cidades. As telas como meio de contato. Assim como o rosto sem rosto dos que nos deixaram. Nada do que estou descrevendo fazia parte do nosso léxico visual seis meses atrás. Essas imagens vieram para serem gravadas em nossas memórias permanentemente.

Existe algo de ainda mais profundo: pela primeira vez esta condição é humana e não nacional. Não existem lados dessa dor, todos sofrem. E todos são poeticamente sensibilizados por ela. Não me lembro qual outra vez na história um acontecimento em comum tocou o simbólico do oriente e do ocidente de forma equivalente. A condição humana é o terreno mais fértil para a arte.

A matéria-prima da arte é o fio do trauma, entremeado com a linha do sonho. O tecido que produziremos será o canvas de uma nova arte que ainda não somos capazes de intuir. Mas o milagre artístico só acontece quando a obra toca o coração e a mente de quem a vê. Não podemos perder este contato com o público, sob o risco de derivarmos sem norte.

Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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