Coluna da Letrux: Uma nova compulsão — Gama Revista
COLUNA

Letrux

Uma nova compulsão

Aconteceu: estou viciada em ‘Vale Tudo’ e temo que quando acabe, eu sofra de abstinência. Culpo a pandemia mas também parabenizo a todas as pessoas envolvidas.

09 de Setembro de 2020

Não sou dada à compulsão. Não está no meu mapa, não está no meu metabolismo. Abro a caixa de BIS e consigo comer dois, às vezes quatro. Sei que poderia até ir além, experimentando coisas mais perigosas para os meus neurônios, apenas pela insanidade momentânea, visto que não faria de novo. Não sei explicar, sei que sou assim: pouco compulsiva. Talvez minha única compulsão seja o celular, o fato d’eu responder rápido “não significa que eu estou te querendo, significa que estou com o celular na minha mão pois estou viciada no ciclo de respostas neuroquímicos catalisados pela produção de dopamina induzida pelas mídias sociais”, me alertou um meme de uma página sobre ciência. Meu parceiro que me enviou, o que mais sofre com minha compulsão, claro.

Durante a pandemia, me embrenhei em muitos filmes, séries, vídeos no Youtube. Se não podemos passear com o corpo, passeei um bocado com a mente. Destaco algumas pérolas: “Koyaanisqatsi – Uma Vida Fora do Controle” (1982), absurdas imagens sobre nossa absurda vida; “Stop Making Sense” (1984), um filme genial sobre a banda Talking Heads, obra prima; “Uma Vida Oculta” (2019), do Terrence Malick, fiquei abaladíssima, ainda mais quando descobri mais sobre a história real que inspirou. Teve o belérrimo “Retrato de Uma Jovem em Chamas” (2019); revi “A Viagem do Capitão Tornado” (1999), meu filme favorito da infância. Amo/sou Milos Forman e assisti também a “Procura Insaciável” (1971), ângulos, cenas, direção de arte, é tudo um maravilhamento completo. Fui atropelada pelo documentário “Revelação” (2020), que aborda a representatividade trans em Hollywood. Fiquei doida com a série “Arremesso Final” (2020), sobre uma época de ouro da NBA (sou hipnotizada por Michael Jordan), e também gostei muito da série “High Maintenance”, trilha, roteiro, concepção, achei tudo bem curioso.

Também adentrei numas biografias cinematográficas: um filme sobre Hannah Arendt e outro sobre Judy Garland. Minha cabeça vai longe e assim sou: nem tanto ao céu, nem tanto à terra e há beleza e assunto em tudo: nas intelectuais e nas divas de cinema. Vi uns vídeos no Youtube de um comediante chamado Bill Hicks, morreu cedo, com 32 anos. Altamente crítico, ele até desliza em alguns assuntos por contextos de época, mas sem dúvida, um cérebro bem acima da média. Guitly pleasure: gosto de sotaque britânico. Tenho até um sobrinho inglês, veja só como é a vida. Tenho altas críticas à monarquia, mas tenho curiosidade com a família real inglesa. Bobagem, eu sei. Mas durante a pandemia, o que fazer? Finalmente cedi e vi todas as temporadas de “Downtown Abbey” (2010-2015), sempre adiava pensando “não tenho tempo pra ver algo que tem sete temporadas, não sou dessas”. Agora eu tinha tempo, agora eu vi. Muito pelo sotaque, muito por Maggie Smith, atriz fenomenal, te dou todos os prêmios da minha pandemia, meu amor. Tudo teu. Many, many thanks.

Não consigo me imaginar durante nove meses presa à televisão acompanhando sagas de núcleos

Bem, agora que já desfilei umas dicas que vi em momentos de sanidade, quer dizer, alguma sanidade, visto que a quarentena não permite tanta, infelizmente. Agora vou falar sobre uma compulsão. Aconteceu, não sei explicar. Logo eu que não era dada. Mas a vida é assim: de real e de viés. Vê só que cilada. Me mudei de cidade. Estar no Rio sem fazer shows, se mostrou algo bem impo$$ível. Aluguel, condomínio, sagas. Minha avó tem uma casa na região dos lagos e cá estou há mais de mês agora. Meu parceiro passa horas e horas estudando piano num quarto lá fora. Eu fico na casa da frente, tendo ideias para tentar ganhar grana na pandemia, mirabolando projetos, lendo algum livro (no momento estou lendo a biografia da Janis Joplin, já li algumas mas essa é especial pois foi a irmã caçula que escreveu), cozinhando pratos novos, falando com amizades no WhatsApp, perdendo tempo com bobagens no Direct, enfim, a vida em suspensão, mas tentando manter aquela chama, aquele brilho: voltei a fazer exercícios – quando não faço, a proximidade com o buraco me assusta um tanto, voltei a compor – estar na casa que passei férias na infância sem dúvida mexeu com muitas questões internas, e voltei a brincar com o violão e duas canções já foram catapultadas em plena sala onde fiz minha festa de seis anos. Sem tema. Nascer no quinto dia de janeiro não permitia muita megalomania nas festinhas. Era um bolo de chocolate e talvez uma vela de um ursinho carinhoso e pronto. E tudo bem, sofro zero por isso, acho até engraçado e divertido. O que eu me lembro é tão precioso que isso é mero detalhe.

Não sou de novela. Pelo tamanho, pela encheção de linguiça, pela atuação curricular de muitos, pelo roteiro fraco de tantas, infelizmente não é algo que me captura. Sou formada em teatro, deveria ir à Globo gravar meu vídeo de atriz assim que me formasse, e preferi ir para Alto Paraíso, depois até fiz o vídeo cadastro e apareci em pontas hilárias, besteirinhas que alegraram minha família, mas que me deram um alerta de que a saga é imensa e que talvez aquilo não fosse ser meu destino. A música já causava furacões internos do qual eu não conseguia mais voltar. Amigos vão dizer “Ah, mas você não viu Avenida Brasil ou aquela outra”. Vi pedaços, trechos, sempre espio mas não é algo que me capture, não é. Não consigo me imaginar durante nove meses presa à televisão acompanhando sagas de núcleos, não consigo, minha vida já tem muitas facções pra acompanhar, é barra. Com todo respeito a todos envolvidos, não é do meu metabolismo.

Mas, mas. Estamos numa pandemia, estou presa dentro de casa, estou isolada da minha banda, do público, das minhas amigas. Ligações de vídeo ajudam, mas não é a mesma coisa. Estou trabalhando, na medida do que posso, mas há horas de puro vazio e silêncio e espera e nada. E foi aí que lembrei que “Vale Tudo”, novela escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, estava disponível numa plataforma. Pra quê? Eu já havia visto há uma década quando sua reprise no Canal Viva foi celebrada como se fosse inédita. E talvez fosse, porque quando a novela estreou em 1988, eu tinha apenas seis anos e além de ser muito nova para compreender os símbolos, tinha menos paciência ainda para algo que durava uma gestação.

Um mundo pré-photoshop ultrapossível e tesudo. As musas têm dentes amarelos, buços, suam no sovaco

Em 2010, revi a reprise e fervi, entendi tudo. Todo o frisson em cima de Beatriz Segall, Renata Sorrah e Glória Pires. Palmas, palmas, palmas. Mas 2010 já parece muito distante, e eu via um capítulo por dia, ou quando podia, ou quando lembrava. E as sequelas da vida privada chegam, risos e choros. Chegam. Portanto lembro quem matou Odete Roitman, mas não lembrava dos coadjuvantes tanto assim. Inclusive, estou me deliciando justamente com quem não aparece tanto. Na ausência de família, amizades, restaurantes, shows, descobri uma nova compulsão: ver “Vale Tudo” enquanto cozinho, enquanto faço exercícios, enquanto falo ao telefone com alguém (nas cenas mais enjoadinhas, ou quando Regina Duarte aparece com sua complicadíssima voz estridente). No início achei que ia ser mais uma coisa que eu veria durante a pandemia, mas a verdade é que estou compulsiva. Vejo um capítulo atrás do outro. Fico numa fissura doida com cenas bem mais livres de uma época curiosa do Brasil: caos econômico, inflação desenfreada (e a novela trata muito bem de explanar isso), mas ao mesmo tempo cenas de corpos livres, sem opressão da malhação extrema. Um mundo pré-photoshop ultrapossível e tesudo. As musas têm dentes amarelos, buços, suam no sovaco (hoje em dia colocam absorvente nas axilas, de forma que nenhum ator ou atriz forme a famosa “pizza” na camisa). Há cenas sobre duas personagens lésbicas, maravilhosas, há uma dúvida eterna de Reginaldo Faria se o próprio filho é gay, só porque ele gosta de música clássica e literatura. Há falas dignas de grandes prêmios entre Renata Sorrah, Nathália Timberg e Beatriz Segall. E há o grande mote da novela: até que ponto vale à pena ser honesto no Brasil? Grandes cenas, grandes debates, atuações esplêndidas, questões atualíssimas, tá tudo ali.

Não acho que eu vá virar noveleira ou algo assim. Mas aconteceu: pela primeira vez na vida me vejo num estado compulsório. Fico ansiosa quando não vejo, chega a me dar agonia quando passo um dia sem um capítulo. Eu que tanto maldisse novela na vida, eu que tanto critico quem é viciado em ver um capítulo atrás do outro. Aconteceu: estou viciada em “Vale Tudo” e temo que quando acabe, eu sofra de abstinência. Quem diria. Culpo a pandemia mas também parabenizo a todas as pessoas envolvidas.

Chocolates, álcool, drogas, açúcar, consegui passar bem no isolamento. Um tiquinho aqui, um tiquinho ali. Mas “Vale Tudo”, veio tudo mesmo.

Letrux é atriz, escritora, cantora, compositora e uma força da natureza cujo trabalho é marcado por drama, humor e ousadia. Entre seus trabalhos estão o álbum “Letrux em Noite de Climão” e o livro “Zaralha”

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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