Sobre vacina, Hebe e um amor impossível — Gama Revista
COLUNA

Letrux

Sobre vacina, Hebe e um amor impossível

“Sou muito terra para me paralisar com platonismos, mas amo uma boa história, ah, como amo”

23 de Junho de 2021

Falta pouco pra eu me vacinar. Estou numa grande sensação infantil da véspera do passeio escolar. Não consigo dormir por excitação. Sei que é só a primeira dose, sei que devemos continuar usando máscara, mas é exatamente como o passeio do colégio: as vésperas causavam mais emoção do que o ato em si. Lembro de ler Clarice Lispector e sentir que ela me esfregava uma máxima que panca minha cabeça até hoje: “As realizações matam os desejos”. Caraca.

Uma vez eu estava vendo Hebe, (que saudade, risos! Era sempre segunda, era sempre cafona, era sempre surrealista, tinha sempre um gringo com playback, tinha sempre um momento político suave, Hebe olhando na câmera e falando comigo, com você, eu nem tinha 30 anos, mas a alma velha sentia carinho com aquela senhora louca, loira pintada, pisciana, cheia de joias, muito mais bem arrumada que minhas avós. Muito mais rica, obviamente. Abri um parênteses tão enorme que agora nem vou mais fechar, vou continuar daqui mesmo. Muito que bem: já cogitei ter uma filha com esse nome, não tanto pela apresentadora, pensava mais na mitologia mesmo, e gosto da letra H, letra louca. Nessa segunda-feira de dois mil e dez, dois mil e onze, estava eu com muito tédio e ainda poucas mídias sociais na minha vida a Hebe recebeu uma senhora anônima em seu famoso sofá. Ela queria achar o grande amor da sua vida. Eles eram jovens no interior do Pará, pobres, “comiam um da boca do outro”, a Hebe falou. “Sem nojo algum, só amor”, a senhora completou. Eles adoravam ouvir Amado Batista. Até que um dia o rapaz foi tentar a vida em São Paulo, pediu pra ela esperar. Mas ela, agoniada que só, não aguentou a demora, e casou com outro rapaz, teve filha e tudo.

Eu nem tinha 30 anos, mas a alma velha sentia carinho com aquela senhora louca, loira pintada, pisciana, cheia de joias

Um belo dia chega uma carta de São Paulo, dizendo: “Agora estou com tudo armado pra sua vinda, meu amor”. Tinha dinheiro e tudo no envelope, pra ela ir. Só que o marido rasgou a carta do ex-amor. Fim, nunca mais se viram. A Hebe contava com aquela cara de quem sabe que tem uma puta história dentro da boca, ela demorava, ela metia adjetivos, a senhora chorava, ria, dava detalhes da juventude. Enquanto escrevo essas palavras, penso em ir ao Youtube tentar achar, mas estou apegada à minha memória. Mas não estou mentindo. Posso estar delirando, nasci em 82. Mas mentindo, não. Claro que a equipe da Hebe achou o cara trocentos anos depois. A senhora estava cheia de aneizinhos, brinquinhos, batonzinho, a bichinha se ajeitou toda para o grande encontro da vida dela. A maior espera. O grande amor. Nisso entra um senhor magro, alto, boné dos sem-terra (fiquei feliz do SBT não ter proibido), um pouco encabulado, ele senta no sofá, a Hebe no meio, verificam datas, vizinhanças, fatos, confirmam que eles são eles mesmos. Estamos falando de 40 anos depois, sem internet, sem registro fotográfico, com drásticas mudanças corporais, eles poderiam nem ser eles mesmos, imagina que loucura. Nisso, o homem diz que virou padre. A senhora fica visivelmente decepcionada mas diz que “tudo bem, queria mais saber se você estava vivo”. Corta para Hebe dizendo: “Você não teve o grande amor de volta, mas vai encontrar com outro amor”. Nisso, Amado Batista entra, a senhora se ajoelha, chora mares. “Desisto (Obrigado a desistir)”, é o nome da canção que Amado canta. Sei que hoje em dia ele é bolsominion, mas vou tentar não ferver muito sobre isso, se não vou abrir uma aba e não sei quando serei capaz de fechá-la.

Eles nunca realizaram o desejo deles, pelo que ela contava parecia que nunca tinham transado, ficou essa coisa no ar

Nunca mais esqueci essa cena. Fiquei apreensiva como um ato da sua vida, uma impaciência, um fogo no cu momentâneo, pode ter consequências catastróficas. Esqueci o nome dela, infelizmente. Mas acho que a queridoca jurou que ia passar. Arrumou outro, substituiu, e nada de esquecer. Anos. Sei que tem caô na TV, sei porque já participei de alguns até. Uma vez fazendo um programa de turismo, eu tinha que fingir que eu tinha ido a cavalo num vulcão no México. Claro que eu fui de carro e gravei uma cena em cima do cavalo, onde eu havia acabado de sentar: “Depois de tanto tempo, acabei de chegar aqui no vulcão, blá blá blá.” Mas essa mulher era verdade, o padre era verdade. Me questiono se ele foi ser padre pelo coração partido ou se realmente baixou uma paixão por Deus, Jesus, enfim, jamais saberemos, Hebe não perguntou sobre isso, ou eu não lembro, mas ah, eu lembraria. Amado cantava, Hebe passava sua mão com mais de R$ 500 mil em adereços, nas costas da senhora que devia ter sua idade, mas a vida miserável castiga e ela parecia ser vinte anos mais velha que Hebe. Eles nunca realizaram o desejo deles, pelo que ela contava parecia que nunca tinham transado, ficou essa coisa no ar. “Qualquer coisa no ar, esse desassossego”, como canta Bethânia na música “Recado Falado”, de Alceu Valença. Vejo Clarice acenando com a cabeça e baforando um cigarro com cara de “Te disse”.

Sou muito terra para me paralisar com platonismos, mas amo uma boa história, ah, como amo. Não me permitiria esse tipo de violência da dúvida. “E se?” Ainda mais hoje em dia tendo meios, vivo o que tenho pra viver. Durante um tempo morei com uma atriz que tinha escrito na parede duas palavras “Vive isso”. Todo dia eu acordava e pensava “Tá bem”. Era simples e fatal. Comecei com a vacina, me perdi numa história de amor, mas é que a vacina injeta esse tipo de ânimo mirabolante. Tá no ar, tá um desassossego.

Num mundo delirante, quero acreditar que Hebe deu um selinho nela antes de ir embora. O padre, imagina, deve ter só beijado a mão da senhora. Mas quem sabe, (por favor, mundo) Amado Batista não deu um beijão no camarim? E ela passou os últimos anos da sua vida com essa lembrança? Quem sabe, mundo? Por favor, mundo?

Letrux é atriz, escritora, cantora, compositora e uma força da natureza cujo trabalho é marcado por drama, humor e ousadia. Entre seus trabalhos estão o álbum “Letrux em Noite de Climão” e o livro “Zaralha”

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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