Coluna do Leandro Sarmatz: Vícios necessários — Gama Revista
COLUNA

Leandro Sarmatz

Vícios necessários

O vício é a nerdice da vida cotidiana. Você mergulha num assunto (ou numa substância) e quer aprender tudo a respeito. E experimentar. E não voltar nunca mais

12 de Abril de 2021

Semana passada muita gente celebrou os 200 anos do nascimento de Charles Baudelaire (1821-1867), o poeta que não só anunciou a modernidade, como tocou as trombetas mais duradouras e transgressivas da lírica francesa até hoje. Baudelaire influenciou meio mundo. Não há ninguém na poesia nos últimos 150 anos que não tenha sido marcado pelos poemas de “As Flores do Mal” (1857). Biblioteca básica. Baudelaire tem um poema em prosa bastante famoso, “Embriagai-vos”. É um verdadeiro convite à viagem. “Deveis estar sempre embriagado”, escreve. E acrescenta: “De vinho, poesia ou de virtude”. É aí mesmo que eu quero chegar. Baudelaire enchia a cara (absinto e vinho), pirava o cabeção (haxixe) e gostava de uma sacanagem (morreu de sífilis). Guardo a maior simpatia por gente assim. Tenho para mim que um vício, qualquer um, é necessário. Uma pessoa sem vício é muitas vezes vazia, mortal e sem assunto. O vício é a nerdice da vida cotidiana. Você mergulha num assunto (ou numa substância) e quer aprender tudo a respeito. E experimentar. E não voltar nunca mais.

Lembro do que era voltar de uma balada nos anos 1990 com a roupa inteira cheirando a Marlboro vermelho

Tenho amigos fumantes. Sempre tive horror a cigarro: lembro do que era voltar de uma balada nos anos 1990 com a roupa inteira cheirando a Marlboro vermelho. A camisa, o cabelo, cada centímetro do corpo exalando notas de cinzeiro com pitadas de cerveja rançosa. Antes, na infância profunda, minha mãe me queimou várias vezes sem querer enquanto gesticulava ou se virava no carro para apartar as brigas com minhas irmãs. De maneira que “Cigarro: minha história pessoal” é um compêndio repleto de traumas familiares e odores malsãos. Porém, nunca encorajei meus amigos fumantes a largar o vício. Quero vê-los mortos? Jamais. É que o cigarro, neles, é um complemento, um charme a mais, uma obsessão circular que os enche de estofo e energiza os próprios sonhos. Quem sou eu para me voltar contra isso?

Até porque tenho os meus próprios vícios. Já falei por aqui da minha adicção por camisas havaianas. Mas tenho outros, em que me equilibro numa corda bamba imaginando que, lá embaixo, possa haver uma rede de proteção. Álcool, doce de leite (argentino ou uruguaio) e pão. Não consigo parar. É muito mais forte do que eu. Trata-se de uma combinação estranha: nunca vou parecer aqueles junkies raquíticos e cavernosos, com ossos e olheiras à mostra, infelizmente. Meu tipo de vício, contudo, ainda vai me aproximar daqueles sujeitos com a camiseta de banda estourando no umbigo. (Outra referência aos 1990: o tipinho da capa do álbum “You’ve Come a Long Way, Baby”, de Fatboy Slim.)

Aprecio a sensação da embriaguez crescendo até se tornar euforia e apagamento das maiores preocupações do momento

Um dia a gente vai sair desse horror em que estamos mergulhados. Até lá, porém, eu não pretendo mexer um centímetro em relação aos meus vícios. Gosto de bebida e gosto de ler sobre ela. Aprecio a sensação da embriaguez crescendo até se tornar euforia e apagamento das maiores preocupações do momento. E também gosto de escrever e ler a respeito (a coluna do meu amigo Daniel Benevides na Folha é um barato, aliás). Um dos meus deuses na literatura é Joseph Roth, ficcionista supremo e pau d´água quintessencial. Procure dele a novelinha “A Lenda do Santo Beberrão”, apoteose literária da manguaça. Roth era um súdito do Império Austro-Húngaro que se refugiou em Paris e morreu com delirium tremens. Escrevia em alemão mas suas línguas francas eram o licor, o whisky e o vinho. Já sobre doce de leite e pão é mais difícil tocar a melodia, mas fazer o quê: são prazeres sensoriais, gustativos, então eles se bastam. Eles já são a poesia. Prescindem de maior palavreado.

Também confesso uma quedinha pela maconha mas nunca fui o tipo que vai atrás do traficante. O fato é que nunca consegui ter maconha em casa. Já tive que depender de amigos piedosos e mais malandrinhos do que eu. Sou o poster boy do otário: fraco, amedrontado e neurótico. Um judeu pequeno e narigudo com óculos enormes. Ou o trafica vai achar que sou um policial muito rastaquera se fazendo de retardado ou vai me dar uma facada na hora em que eu abrir a carteira. De maneira que nunca consegui me dedicar à maconha como eu queria. Pequenas frustrações da vida adulta.

Não sei vocês, mas adoro uma história de vício na literatura ou no cinema. Filho de pais caretésimos (“Hippie é uma pessoa que gosta de viver no lixo”, meu pai explicou quando eu tinha seis anos e perguntei quem eram aqueles amigos cabeludos dos meus primos mais velhos), tenho o fascínio pelo bas fond. E pelas narrativas exemplares de queda. O filme do momento é “Druk”, de Thomas Vinterberg. A história de um grupo de amigos de meia-idade que resolve suprir os próprios organismos com o percentual que “naturalmente” nos faltaria de álcool. Claro que a coisa escapa do planejado. E é aí que mora a graça – de mãos dadas com o perigo, como só acontece em todas as histórias de compulsão.

E é assim mesmo. Vício 100% bom não é vício, é beatitude. Muita gente bem versada em psicologia vai deplorar tudo isso que escrevo. Porque há dezenas de outros fatores e questões para se levar em conta. Verdade. Tem muita história triste por aí. Quando escapa da recreação, bem, aí é outro papo. Mas enquanto alguns encararem o álcool, o cigarro ou a comilança como um playground adulto, a diversão estará assegurada. Mesmo nos momentos mais sombrios.

Leandro Sarmatz é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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