Coluna da Bianca Santana: Que mortalha poderá cobrir 210 mil corpos? — Gama Revista
COLUNA

Bianca Santana

Que mortalha poderá cobrir 210 mil corpos?

Engana-se quem pensa que as mortes, a maior parte delas evitáveis, são fruto de incompetência. O número é resultado de uma intenção política

20 de Janeiro de 2021

As palavras da escritora ruandesa Scholastique Mukasonga nas páginas iniciais de “A Mulher de Pés Descalços” ( Editora Nós, 2017) têm ressoado por aqui:

“Mãezinha, eu não estava lá para cobrir o seu corpo, e tenho apenas palavras — palavras de um língua que você não entendia — para realizar aquilo que você me pediu. Estou sozinha com minhas pobres palavras e com minhas frases, na página do caderno, tecendo e retecendo a mortalha do seu corpo ausente”.

Uma das únicas sobreviventes de sua família ao genocídio dos tutsi em Ruanda, Mukasonga começa o livro contando que sua mãe pedia às filhas, insistentemente, que cobrissem seu corpo depois de morta. “Não cobri o corpo da minha mãe com o seu pano. Não havia ninguém lá para cobri-lo. Os assassinos puderam ficar um bom tempo diante do cadáver mutilado por facões. As hienas e os cachorros, embriagados de sangue humano, alimentaram-se com a carne dela. Os pobres restos de minha mãe se perderam na vala comum do genocídio, e talvez hoje, mas isso não saberia dizer, eles sejam, na confusão de um ossuário, apenas osso sobre osso e crânio sobre crânio.” Valas comuns, como as de Manaus, onde têm sido despejados os corpos das pessoas deixadas morrer por covid-19.

Com mais de 210 mil mortes, sem oxigênio ou vacina para todos, setores médios e brancos estão conhecendo a potência genocida deste governo

Deixadas morrer, nos termos foucaultianos, como uma das formas de quem ocupa o poder executar sua política de morte. Além de o Estado brasileiro matar corpos indesejáveis à bala, a biopolítica (ou necropolítica para Mbembe) também diz respeito a deixar morrer os chamados Outros: negros, indígenas, pobres. Do Amazonas, assim como de Santa Catarina, brancos ricos podem embarcar em aviões particulares com destino a hospitais privados em São Paulo em busca de tratamento. Ainda assim, a morte têm alcançado muitos deles.

Engana-se quem pensa que 210 mil mortes, a maior parte delas evitáveis, são fruto de incompetência. O número é resultado de uma intenção política. O projeto é de morte, não de vida. Para a população negra e indígena essa não é uma novidade do governo Bolsonaro. Desde pelo menos 1888, a intenção e a política pública mais efetivas do Estado brasileiro para a população negra é o genocídio, a eliminação dos considerados indesejáveis.

Sueli Carneiro, em diálogo com Foucault, nos apresenta a noção de dispositivo de racialidade: um conjunto de normas, instituições, ditos e não ditos que produzem nas relações raciais o Ser (hegemônico, branco) e o Outro, que está sob o signo da morte. Na tese “A construção do outro como não-ser como fundamento do ser”, defendida em 2005 na Faculdade de Educação da USP, Sueli Carneiro explica: “É a composição do dispositivo de racialidade com o biopoder que se torna pois como propomos nesta tese mecanismo de produção de dupla conseqüência: promoção do vitalismo dos brancos e multicídios de negros na esfera do biopoder. Sob a égide do dispositivo de racialidade afigura-se a inclusão prioritária e majoritária nas esferas de reprodução da vida dos racialmente eleitos, e, ao mesmo tempo, a inclusão subordinada e minoritária de negros, eventualmente sobreviventes das tecnologias do biopoder”.

A ação de matar e a omissão do Estado em deixar morrer são tolerados pela sociedade brasileira tanto na naturalização dos assassinatos e desaparecimentos de jovens negros, quanto na ausência de políticas de saúde para negros e pobres. E agora, com mais de 210 mil mortes, sem oxigênio, sem vacina para toda a população, com o engodo de um tratamento precoce que não existe, setores médios e brancos estão conhecendo a potência genocida deste governo.

Como perguntou Scholastique Mukazonga no sonho que encerra “A mulher dos pés descalços”: Você tem um pano grande suficiente para cobrir todos eles… para cobrir todos… todos…?”

Bianca Santana pesquisa memória e a escrita de mulheres negras. É autora de 'Quando Me Descobri Negra'. Pela Uneafro Brasil, tem colaborado na articulação da Coalizão Negra por Direitos

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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